Reciclagem de resíduos sólidos: a propaganda é
bonita, mas o processo explora os catadores. Entrevista com Alex Cardoso.
“A Política Nacional de Resíduos Sólidos optou por
fazer reciclagem investindo nas pessoas, gerando riqueza e conhecimento a
partir dos resíduos para incluir e não para excluir”, diz coordenador do Fórum
de Catadores de Porto Alegre.
Foto: manosso.nom.br
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Quatro anos depois da publicação da Política
Nacional de Resíduos Sólidos – PNRS, “menos de 40 municípios contrataram
catadores para realizar a coleta seletiva” e apenas 34% deles fizeram um Plano
Municipal de Gerenciamento Integrado de Resíduos Sólidos, informa Alex
Cardoso em entrevista à IHU On-Line, concedida por telefone.
Na avaliação dele, a implantação da PNRS
está caminhando a passos lentos, “porque os gestores municipais e estaduais não
estão enxergando os benefícios ambientais e sociais que a política traz”. Além
disso, pontua, “as prefeituras subestimam as pessoas, pensando que a pobreza
está interligada à questão da inteligência. Elas pensam que, porque as pessoas
estão em uma situação de exclusão e de extrema pobreza, são burras. (…) A lupa
de visão delas é outra e, dessa forma, por exemplo, a prefeitura de Porto
Alegre entrega a coleta seletiva para uma empresa privada pela bagatela de
meio milhão de reais por mês, e outros municípios, a exemplo de Caxias do
Sul, pagam 400 mil reais por mês para uma empresa fazer a coleta seletiva,
sem enxergar o trabalho que os catadores podem desenvolver com muito mais
qualidade e eficiência”. Para ele, a discussão e a propaganda feita em torno
dos benefícios da reciclagem de resíduos sólidos “é muito bonita”, mas o
processo de reciclagem no país está sendo feito com base na “extrema exploração
dos catadores, ferindo inclusive os direitos humanos, porque está sob o
controle de meia dúzia de empresas, formando quase que um ‘cartel’”.
Membro do Movimento Nacional dos Catadores de
Materiais Recicláveis, Cardoso diz que, para cumprir as
determinações da PNRS, o processo de reciclagem precisa de “estruturação
e organização”. Como proposta, sugere a expansão da Reciclagem Popular,
que reconhece e valoriza o trabalho do catador como protagonista desse
processo. “Nessa perspectiva, defendemos que as prefeituras façam contratos com
as cooperativas de reciclagem, garantindo parte da infraestrutura, que o
governo do estado pague pelos serviços ambientais que os catadores desenvolvem
e que o governo federal seja responsável pela infraestrutura necessária para
garantir a prestação de serviço, como a compra de máquinas, equipamentos,
construção de galpão, como tem sido nos últimos anos”, explica.
Como exemplo de uma rede de cooperativas que está
desempenhando um trabalho satisfatório em relação à reciclagem, Cardoso
menciona a atividade desenvolvida por aproximadamente 480 catadores durante
a Copa do Mundo. “Esse é um exemplo do que estamos desenvolvendo
nacionalmente: mais de 840 catadores estão dentro dos estádios das cidades-sede
da Copa do Mundo, incluindo as Fan Fest, com gerenciamento
integrado de resíduos sólidos. Eles foram contratados, valorizados e estão
recebendo, diariamente, mais ou menos 80 reais. Durante este mês da Copa do
Mundo, a renda deles, que varia entre 600 e 800 reais, vai passar para
aproximadamente dois mil reais”, conclui.
Confira a entrevista.
Foto: fld.com.br
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IHU On-Line – Qual é a posição do movimento
nacional dos catadores em relação à reciclagem de resíduos sólidos e como o
movimento vê a discussão acerca da incineração de resíduos?
Alex Cardoso - A reciclagem, no que se refere à propaganda
ou divulgação, é uma coisa muito bonita e parece que só tem benefícios. Mas a
forma como a reciclagem está sendo organizada é baseada na extrema exploração
dos catadores, ferindo inclusive os direitos humanos, porque está sob o
controle de meia dúzia de empresas, formando quase que um “cartel”. Além
disso, muitos ferros-velhos estão comprando materiais recicláveis a preço que
eles colocam, e os catadores estão sem infraestrutura adequada, trabalhando nas
ruas. Para sobreviver, acabam tendo de se sujeitar a essas situações.
No Brasil, onde se formam os aglomerados de
catadores, se formam as vilas, e a base econômica dessas vilas é a reciclagem.
Então, quando se investe em catadores, automaticamente está se investindo nas
suas comunidades.
Incineração
“A incineração é a contramão da reciclagem”
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A questão da incineração é a contramão da
reciclagem. Hoje, há duas rotas tecnológicas em relação à reciclagem: uma é a
reciclagem popular, a outra é o reaproveitamento energético. O reaproveitamento
energético com base no processo de incineração dos resíduos sólidos é
uma alta tecnologia que está concentrada nas mãos de quatro ou cinco empresas,
as quais fazem a gestão dessa tecnologia no mundo. Trata-se de uma tecnologia
muito cara para ser implantada, uma vez que uma indústria incineradora custa no
mínimo 400 milhões de reais, demora 20 anos para se pagar e seu tempo máximo de
funcionamento é de 30 anos, ou seja, teria 10 anos para funcionar sem ter custos.
O material principal para alimentar o forno das
caldeiras para gerar calor e energia é um material potencialmente reciclável,
como papel e plástico. Outros materiais, como vidros e metais, não têm
potencial calorífico e os orgânicos necessitam de outros tipos de materiais
para poderem ser queimados. A parte mais cara da incineração não é a parte de
implantação da usina, mas o custo posterior com o tratamento dos afluentes,
porque a queima dos produtos libera toxinas que acabam tomando conta de
territórios internacionais, ou seja, se queimar material reciclável no Uruguai,
automaticamente nós vamos sentir os efeitos no Brasil. Além disso, o
tratamento dos afluentes requer investimento e controle técnico.
Hoje, para ter uma ideia, na França, onde
tem a maior concentração de incineradores – totalizando 158 – e
onde se encontra o incinerador mais tecnológico do mundo, são gastos
aproximadamente 58 euros por tonelada para fazer o tratamento dos afluentes.
Mas, olhando para a realidade brasileira, onde ainda existem filas no SUS,
crianças fora da escola, buracos na rua, percebemos que o Brasil tem
outras urgências a resolver. Nesse sentido, a Política Nacional de Resíduos
Sólidos optou por fazer reciclagem investindo nas pessoas, gerando riqueza
e conhecimento a partir dos resíduos para incluir e não para excluir.
IHU On-Line – O que mudou no processo de reciclagem
no Brasil depois da PNRS?
Alex Cardoso – Os processos populares que têm a incumbência de
incluir o povo, tendem a demorar mais que os processos de exclusão do povo.
Hoje, no Rio Grande do Sul, nove municípios – entre eles Gravataí,
Canoas, São Leopoldo, Novo Hamburgo, Jaguarão e Santa
Cruz do Sul – já contrataram catadores a partir da Política
Nacional de Resíduos Sólidos, os quais são responsáveis pela coleta
seletiva de forma solidária e participativa e ensinam os moradores a separar os
materiais de forma adequada. Quando analisamos esse processo no país,
percebemos que menos de 40 municípios contrataram catadores para realizar a
coleta seletiva, ou seja, em quatro anos de existência da PNRS, apenas
34% dos municípios brasileiros fizeram um Plano Municipal de Gerenciamento
Integrado de Resíduos Sólidos e apenas quatro estados têm planos
estaduais. A implantação da política está caminhando a passos lentos, porque os
gestores municipais e estaduais não estão enxergando os benefícios ambientais e
sociais que a política traz.
Estamos em um processo de luta de organização dos
catadores. Nesses últimos quatros anos, 14 mil catadores foram formados no
país, sendo que mil deles residem no Rio Grande do Sul. Houve um
processo de qualificação dos gestores das cooperativas em relação à logística
na coleta coletiva nos municípios. Também conseguimos equipamentos e caminhões
para três cooperativas no Rio Grande do Sul, nos municípios de Gravataí,
Santa Cruz do Sul e São Leopoldo, as quais são responsáveis pela
coleta seletiva. Além disso, estamos trabalhando muito firme na organização dos
catadores que ainda trabalham nas ruas, para que eles se organizem a partir de
suas cooperativas. Também estamos tentando organizar as cooperativas em redes
de cooperativas para que assim, de forma mais organizada, consigam fazer
geração de serviços para grandes geradores, a exemplo do que estamos fazendo na
Rede CATAPOA, que é a rede dos catadores de Porto Alegre e da
região metropolitana, a qual é responsável pela administração dos resíduos
gerados na Copa do Mundo.
“Aproximadamente 64% do PET
produzido no Brasil é reciclado. Desse material,
aproximadamente 40% acaba se transformando em tecido” |
IHU On-Line – Como tem funcionado o trabalho dos
catadores durante a Copa?
Alex Cardoso - Os catadores de Porto Alegre estão no
estádio fazendo a coleta, a triagem e a destinação correta dos resíduos gerados
na Copa do Mundo. Esse é um exemplo do que estamos desenvolvendo
nacionalmente: mais de 840 catadores estão dentro dos estádios das cidades-sede
da Copa do Mundo, incluindo as Fan Fest, com gerenciamento
integrado de resíduos sólidos. Eles foram contratados, valorizados e estão
recebendo, diariamente, mais ou menos 80 reais. Durante esse mês da Copa do
Mundo, a renda deles, que varia entre 600 e 800 reais, vai passar para
aproximadamente dois mil reais.
IHU On-Line – Como tem se dado a relação das
cooperativas com as prefeituras no que se refere ao processo de coleta seletiva
e reciclagem?
Alex Cardoso - As prefeituras subestimam as
pessoas pensando que a pobreza está interligada à questão da inteligência. Elas
pensam que, porque as pessoas estão em uma situação de exclusão e de extrema
pobreza, são burras. As prefeituras entendem que os catadores estão nessa
situação de vulnerabilidade por causa deles próprios. A lupa de visão delas é
outra e, dessa forma, por exemplo, a prefeitura de Porto Alegre entrega
a coleta seletiva para uma empresa privada pela bagatela de meio milhão de
reais por mês, e outros municípios, a exemplo de Caxias do Sul, pagam
400 mil reais por mês para uma empresa fazer a coleta seletiva, sem enxergar o
trabalho que os catadores podem desenvolver com muito mais qualidade e
eficiência.
As prefeituras pensam que os catadores, por estarem
na situação em que estão, não conseguirão dar conta do trabalho da coleta
seletiva. Mas quando nós questionamos se são os empresários que fazem a coleta
na rua ou se são as pessoas pobres que fazem esse trabalho, não há resposta.
Muitos dos funcionários dessas empresas são catadores que acabam saindo
da cooperativa para trabalhar como gari fazendo coleta de resíduos. São pessoas
humildes, que trabalham por um salário mínimo. A diferença é que uma empresa
tem equipamento, recebe pelo trabalho e consegue, por alguns métodos – os
quais não aprovamos –, financiar campanhas políticas.
IHU
On-Line – Que percentual de resíduos sólidos os catadores conseguem reciclar?
Como tem se dado esse processo de reciclagem após a publicação da PNRS?
Alex Cardoso – Nós não conseguimos ter
números exatos sobre a quantidade de resíduos reciclados. Temos números
aproximados com base em dados fornecidos pelo Compromisso Empresarial para
Reciclagem – CEMPRE, os quais cruzamos com dados do governo federal a
partir da divulgação feita pelo IPEA. Com isso, conseguimos visualizar,
por exemplo, que quase 100% das latinhas de alumínio coletadas são encaminhadas
para reciclagem no Brasil. Dessas latinhas, aproximadamente 80% passam
pelas mãos dos catadores e os outros 20% são vendidos aos ferros-velhos por
bares e armazéns.
A latinha de alumínio tem bem menos valor do que a
garrafa PET. A garrafa PET é a segunda “campeã de reciclagem”, já que
aproximadamente 64% do PET produzido no Brasil é reciclado. Desse
material, aproximadamente 40% acaba se transformando em tecido, inclusive a
camiseta da seleção brasileira é feita de PET reciclado. Posso apostar
que grande parte desse PET reciclado saiu das mãos dos catadores.
IHU On-Line – Quais são as principais dificuldades
em relação ao trabalho com reciclagem?
Alex Cardoso – Tem um que é gritante: a questão da
infraestrutura. Nós conseguimos adquirir conhecimento, temos catadores que
viajam o mundo inteiro, eu mesmo já visitei todos os continentes, já conheci
todas as tecnologias possíveis para a questão do reaproveitamento de resíduos.
Conheci e vi de perto o processo de incineração, conheci e vi de perto os processos
de biodigestão e reaproveitamento de resíduos orgânicos, conheci e vi de perto
vários processos industriais, que são desenvolvidos pelo setor privado, por
exemplo, na Suíça, onde as lixeiras são colocadas em uma espécie de
container enterrado no chão, e um caminhão automatizado coleta esses materiais
que já foram separados pelas pessoas. Também vi processos coletivos, a exemplo
do que ocorre na Espanha, que tem uma cooperativa de 400 catadores
responsáveis pelo processo de coleta dos materiais recicláveis.
No Brasil existem vários tipos de coleta, só
que muitas delas estão no processo “informal”: os catadores fazem a
coleta puxando carrinho, carroça ou com um cavalo na frente, ou pior,
empurrando um carrinho de supermercado ou puxando um saco nas costas. Então, a
principal dificuldade que temos é a da infraestrutura. Com essa falta de
infraestrutura, vence o discurso de não contratar os catadores. Mas como os
catadores vão fazer a coleta seletiva se não têm um caminhão, se não têm
equipamento adequado para isso? Mal se sabe que, com o contrato firmado com o
município, nós conseguimos ter carta branca para pedir financiamento no banco e
comprar equipamentos. O BNDES, em parceria com o Banco do Brasil,
tem uma linha de financiamento direta, com pouca burocracia, para liberar no
mínimo 400 mil reais para os catadores que estiverem contratados pelas
prefeituras para executar o serviço de coleta seletiva. Então, existem formas
de como buscar financiamento, de os catadores executarem o serviço, mas falta
decisão política dos municípios de fazer a contratação dos catadores. Essa é a
segunda dificuldade que temos.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
“A camiseta da seleção brasileira é feita de PET
reciclado. Posso apostar que grande parte desse PET saiu das mãos dos
catadores”
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Alex Cardoso - Há questões importantes que devem ser
consideradas, a exemplo da questão das mulheres. Elas representam 75%
dos catadores do Brasil e cerca de 60% delas são mulheres chefes de
família; elas sustentam os seus filhos a partir da reciclagem. Nesse sentido, a
questão da mulher também é algo preocupante e deveria ter uma atenção maior.
Na prática, investindo nos catadores, se investe em
um público que está em situação de vulnerabilidade. Além de serem pobres, terem
pouca formação, não terem espaço de formação para crescimento pessoal ou
coletivo, as mulheres são excluídas nos seus pequenos projetos de convivência,
inclusive nas cooperativas, na vila. Precisamos ter políticas próprias para a
questão das mulheres catadoras.
Fonte: IHU On-line
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