O preço da carne bovina
brasileira, artigo de Bruno Versiani.
Ao viajar de carro ou ônibus pelas intermináveis
rodovias esburacadas da região Norte do país, especialmente Mato Grosso e Pará,
a cena invariavelmente se repete: planícies a perder de vista de velhos tocos
carbonizados no meio de extensas pastagens salpicadas com o inconfundível
branco do gado nelore. Planícies que há poucas décadas ou anos atrás cobriam
uma verde e exuberante floresta. Ao se adentrar nas pequenas e médias cidades,
há também um padrão que quase invariavelmente se repete : via de regra a
“elite” local circula com grandes camionetes e segue o padrão característico de
vestuário, com calça, botina e chapéu de boiadeiro. Lojas de insumos agrícolas
e veterinários se multiplicam pelas ruas, e sempre alguma variante de música
sertaneja ecoa pela cidade. Do simples assentado do INCRA ao “magnata do boi”,
o sonho de se alcançar riqueza passa quase que invariavelmente pela pecuária
extensiva.
Há poucas semanas atrás vi pela TV Câmara um parlamentar
tecendo amplas laudatórias ao fato de o Brasil ser um grande exportador de
carne bovina, e ao seu preço acessível à amplas camadas da população. Esse
senhor talvez não seja apenas nada além da “ponta do iceberg”, um parlamentar
erigido com amplo dinheiro advindo muito provavelmente da poderosa
agroindústria brasileira. O poder e a articulação da bancada ruralista assustou
até mesmo nossa Presidente na então querela que girou ao redor do código
florestal em 2012.
Quando nasci, em meados da década de 70, menos de
1% da Amazônia brasileira estava destruída e a imensa parcela do Cerrado ainda
estava intocada. A carne bovina tinha um preço relativamente muito mais alto
que nos dias atuais – e mesmo minha família de classe média-alta não se dava ao
luxo de saborear um bife com muita frequência. Hoje, o famoso “churrasco de
domingo” tornou-se quase um símbolo da cultura nacional, um verdadeiro ritual
em que se confraternizam os amigos e parentes em torno das divergências da
política e do futebol. O preço a pagar: em que pesem as divergências
estatísticas, cerca de um quarto da Amazônia foi carbonizada, uma área que se
aproxima da estrondosa cifra de um milhão de quilômetros quadrados (sendo que
há estudos que falam em mais de 35% de floresta já modificada se levarmos em
conta o fogo e a extração seletiva) e algo como metade do Cerrado já não
existe. Foi esse o legado em menos de meio século.
A pecuária extensiva é, sem sombra de dúvida, o
grande motor do desmatamento e da grilagem por terras, com uma avidez incansável
por imensas áreas de pastagem. O rendimento é de menos de um boi por hectare na
Amazônia brasileira. O investimento inicial é relativamente baixo em comparação
com outras culturas, a demanda por mão de obra é pequena, e o retorno é
confiável. Isso pode parecer claro para ambientalistas e uma determinada
parcela da população, mas não o é para a grande maioria. Outro dia, em uma
conversa com amigos (todos de um bom nível cultural), houve perplexidade quando
apontei essa problemática, como se eu estivesse apontando algo de realmente
inédito. No caso da madeira, por exemplo, a associação na cabeça das pessoas é
mais direta com a destruição, porém a vasta maioria ainda não percebe isso
nitidamente em relação ao famoso “bife”.
Não vejo motivo de orgulho nenhum em sermos um
dos maiores exportadores de carne (redundante dizer que esse modelo
agro-exportador deveria ser profundamente questionado). Tampouco vejo motivo
para nos empanturrarmos de carne a preço acessível. Isso só é possível pois
ainda possuímos largar porções de terras agricultáveis que estão sendo
defloradas de suas florestas a um ritmo alarmante. Como diria Margulis em seu
célebre estudo sobre pecuária e desmatamento: será que valeu a pena trocar 50
milhões de bois por 50 milhões de hectares de floresta destruída ??
Bruno Versiani dos Anjos – Analista Ambiental
e Agente de Fiscalização do IBAMA-SEDE, lotado no Centro de Sensoriamento
Remoto. Mestre em Ecologia pela Universidade de Brasília.
Fonte: EcoDebate
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