Brasil lidera oposição contra
novos objetivos do milênio, relacionados à governança, justiça e paz.
A Organização das Nações Unidas
(ONU) está realizando um extenso debate para definir quais serão as novas metas
que substituirão os Objetivos
do Milênio – e o Brasil está no centro de uma das principais controvérsias
desse processo.
Os oito Clique Objetivos de Desenvolvimento do Milênio foram firmados
em 2000 com a finalidade principal de reduzir a pobreza mundial. Eles vão desde
a eliminação da fome à universalização da educação primária, e se desdobram em
metas concretas, como reduzir em dois terços a mortalidade de crianças menores
de cinco anos.
O prazo para o cumprimento das metas é 2015 e,
por isso, os países já vêm debatendo quais serão os novos objetivos que irão
substituí-los.
Dentro desse processo, o Brasil lidera a oposição
a um objetivo relacionado à governança, justiça e paz – e conta com o apoio de
boa parte dos países em desenvolvimento. Recentemente, a Rússia também se manifestou
duramente contra.
Do outro lado, defendendo a inclusão deste
objetivo, há um bloco formado, principalmente, por países ricos como as nações
da Europa Ocidental, Estados Unidos, Japão e Austrália.
Um oficial da ONU que acompanha de perto o debate
disse à BBC Brasil que essa está sendo a discussão mais difícil dentro das
negociações para estabelecer os chamados Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável (ODS).
Brasil defende que foco dos novos objetivos deve
estar no combate à pobreza
Argumentos brasileiros
No início deste mês, chegou-se a um esboço inicial
em que foram estabelecidos 17 objetivos, mas a intenção é diminuir esse número,
para facilitar a divulgação.
Os temas de governança, justiça e paz compõem, por
hora, o 16º. Ele inclui metas como a redução dos homicídios e do tráfico de
armas; garantia de acesso à justiça e liberdade de expressão; e ampliação da
transparência governamental.
Em nota enviada para a reportagem, o Itamaraty
explicou que a adoção de “objetivos independentes sobre governança poderia
tirar o foco dos esforços centrais que os ODS devem promover – em particular, a
erradicação da pobreza”.
Outro argumento reiterado pelo país é que houve um
acordo dentro da ONU de que a base para a definição dos novos objetivos seria o
documento final da Rio+20, conferência realizada em 2012 no Rio de Janeiro.
O texto foi aprovado por consenso pelos 190 países
presentes, resultado atribuído à liderança do diplomata brasileiro Luiz Alberto
Figueiredo, atual Ministro das Relações Exteriores.
A relevância desse documento acaba valorizando o
papel do Brasil nas atuais negociações. A importância da boa governança e da
paz para o desenvolvimento sustentável é citada no texto, mas isso não é
previsto como um objetivo específico.
“O Brasil e os países em desenvolvimento, em
particular, têm defendido que os ODS devem ser voltados aos grandes desafios
para o desenvolvimento sustentável, nos campos econômico, social e ambiental.
Isso significa que se deveria dar prioridade aos temas já acordados em 2012 na
Rio+20″, acrescenta a nota do Itamaraty enviada à BBC Brasil.
Diversas organizações da sociedade civil têm se
mobilizado em reação à posição do Brasil. Elas contestam que essa seja uma
“agenda” dos países ricos e lembram que mesmo em nações como Estados Unidos e
Reino Unido há problemas, como o acesso limitado dos mais pobres à justiça.
Países pobres marcados por intensos conflitos
também têm defendido a importância desses temas. Em um documento conjunto, os
54 países africanos defenderam que paz e segurança deve ser um dos seis pilares
das negociações, mas não está claro se o continente ficaria contra a posição do
Brasil caso ela predomine entre as nações em desenvolvimento.
A Article 19, organização baseada em Londres que
promove a liberdade de expressão e a transparência governamental, está
liderando uma campanha internacional para defender que os temas de governança
sejam confirmados como ODS.
Já a Open Society Foundations, do multimilionário
George Soros, convidou o ministro do Supremo Tribunal Federal Roberto Barroso
para um debate sobre o assunto dentro da ONU. Na ocasião, Barroso afirmou que é
“difícil conceber a ideia de desenvolvimento sustentável, em qualquer de suas
três dimensões – econômico, social e ambiental –, sem incorporar a justiça como
um elemento essencial”.
Para Betsy Apple, da Open Society Foundations, o
Brasil está defendendo uma visão limitada do que é desenvolvimento. A avaliação
é a mesma do Instituto Igarapé, organização brasileira que trabalha para
integrar as agendas de segurança e desenvolvimento.
“Uma coisa não existe sem a outra. É uma visão
estreita separá-las”, afirma Eduarda Hamann, uma das coordenadoras do instituto.
Objetivos de Desenvolvimento Sustentável
17 propostas que ainda estão em
negociação:
1. Acabar com a pobreza em todas as suas formas
em todos os lugares.
2. Acabar com a fome, alcançar a segurança
alimentar e nutrição adequada para todos, e promover a agricultura sustentável.
3. Alcançar saúde para todos em todas as idades.
4. Fornecer educação equitativa, inclusiva e de
qualidade e oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos.
5. Atingir a igualdade de gênero e a autonomia
para mulheres e meninas em todos os lugares.
6. Garantir água limpa e saneamento para todos.
7. Garantir serviços de energia modernos,
confiáveis, sustentáveis e a preços acessíveis para todos.
8. Promover o crescimento econômico forte,
sustentável e inclusivo e trabalho digno para todos.
9. Promover a industrialização sustentável.
10. Reduzir as desigualdades dentro dos países e
entre eles.
11. Construir cidades e assentamentos humanos
inclusivos, seguros e sustentáveis.
12. Promover padrões de produção e consumo
sustentáveis.
13. Promover ações em todos os níveis para
combater as mudanças climáticas.
14. Alcançar a conservação e o uso sustentável
dos recursos marinhos.
15. Proteger e restaurar os ecossistemas
terrestres e interromper toda a perda de biodiversidade.
16. Alcançar sociedades pacíficas e inclusivas, o
Estado de direito, e instituições eficazes e capazes.
17. Fortalecer e melhorar os meios de
implementação [desses objetivos] e a parceria global para o desenvolvimento
sustentável.
A BBC Brasil apurou, porém que existe dentro da
ONU certa compreensão em relação ao posicionamento do Brasil de que assuntos de
segurança poderiam ser uma “distração”, devido a sua complexidade. O país
argumenta que não seria possível falar de paz sem discutir, por exemplo, o
conflito Israel-Palestina ou a política externa americana.
Políticas e receio
O Brasil não nega a importância da paz e da
governança para o desenvolvimento sustentável e tem proposto que algumas metas
relacionadas e essas questões sejam incluídas dentro de outros objetivos, como
os que tratam de redução da desigualdade e promoção da educação.
Os críticos dessa proposta dizem que diluir as
questões de governança, justiça e paz em outros objetivos não daria a devida
visibilidade aos temas.
Historicamente, o Brasil muitas vezes defendeu
que as duas coisas – segurança e desenvolvimento – são inseparáveis. Para
Hamann, a posição da delegação brasileira na ONU hoje parece reflexo da
circunstância política atual.
Por um lado, o país quer fortalecer o documento
da Rio + 20, que é considerado “um filho” do Brasil. Por outro lado, quer
valorizar mais os tópicos em que tem mais poder de influência – o que aumenta
seu papel de liderança nos processos de implementação dos ODS.
“O país é uma referência na questão social e
ambiental, mas não na questão de segurança”, destaca Hamann.
Haveria ainda um receio do Brasil de que a adoção
de um ODS específico para questões relacionadas à paz daria um papel central ao
Conselho de Segurança da ONU dentro do processo de implementação dos objetivos
– e este órgão, que reúne as grandes potências militares, não é considerado
democrático por muitos por não refletir a geopolítica atual em sua
representação.
Outra preocupação explicitada pelo país nas
negociações é que ações internacionais de redução à pobreza fiquem
condicionadas a questões de segurança.
Na avaliação do Instituto Igarapé, a posição do
Brasil também pode refletir um temor de intervenções externas em assuntos
delicados internamente, como os altos índices de violência.
Em declaração neste mês na ONU, a Rússia disse
que se o 16º objetivo proposto for aprovado “uma porta se abrirá para a
interferência nos assuntos internos dos Estados”.
‘Risco alto’
As negociações seguem em andamento em grupos de
trabalho formados por alguns países. Em setembro, uma proposta será apresentada
na Assembleia Geral da ONU.
As discussões sobre quais serão os ODS e como sua
implementação será feita e financiada devem estar concluídas um ano depois,
para a assembleia de 2015.
Betsy Apple, da Open Society Foundations, vê um
risco alto de que o objetivo de governança, paz e justiça seja eliminado. “O
Brasil é muito influente nesse processo e por isso muitos países o acompanham”.
“Se o Brasil não apoiar esse objetivo por causa
de uma agenda política de curto prazo, pode acabar eliminando-o, pois outros
países importantes são de fato contra [esses princípios], como Rússia, China e
Índia. Isso coloca Brasil em uma posição muito poderosa”, afirma o consultor
jurídico da Article 19, Dave Banisar.
Fonte: BBC Brasil
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