Pesquisa detecta bactérias e
fungos em 62,5% de passarinhos silvestres traficados.
As campanhas educativas para desestimular a
compra de animais silvestres comercializados ilegalmente ganharam um reforço em
seus argumentos com um estudo concluído recentemente na Faculdade de Medicina
Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da Universidade de São Paulo (USP).
A pesquisa “Caracterização da microbiota intestinal bacteriana e fúngica
em passeriformes silvestres confiscados do tráfico que serão submetidos a
programas de relocação”, desenvolvida com Auxílio à Pesquisa da FAPESP,
encontrou microrganismos com potencial patogênico – que podem apresentar risco
à saúde humana e animal – em 62,5% de 253 amostras de material coletado na
cloaca (órgão por onde as aves eliminam as fezes e a urina e põem os ovos) de
34 espécies de passarinhos silvestres resgatadas do tráfico de animais e
encaminhadas ao Departamento de Parques e Áreas Verdes de São Paulo (Depave)
para avaliação, reabilitação e relocação no ambiente.
Segundo dados da Rede Nacional de Combate ao
Tráfico de Animais Silvestres (Renctas), as aves são o principal alvo do
comércio ilegal de animais. Os passeriformes silvestres (pássaros nativos com
pequenas dimensões como sabiás, canários, curiós, entre outros) são os mais
traficados, seguidos por papagaios, araras e demais gêneros.
Estima-se que 90% das aves capturadas para
tráfico morram antes de chegar ao destino final. Quando resgatadas por órgãos
fiscalizadores, muitas já se encontram com a saúde debilitada por causa de
condições sanitárias inadequadas na captura, no transporte e na manutenção em
cativeiro.
“A pesquisa de alguns microrganismos como Salmonella
spp., Cryptococcus spp. e Candida spp. é prevista na lista de
exames sanitários recomendados pela Instrução Normativa 179 do Ibama [Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis]”, disse
Priscilla Anne Melville, do Departamento de Medicina Veterinária Preventiva e
Saúde Animal da FMVZ, responsável pelo estudo. “No entanto, quisemos fazer um
estudo mais abrangente para descobrir quais outros patógenos podem ser
carreados por esses animais.”
O trabalho contou com a participação dos pesquisadores
da FMVZ/USP Nilson Roberti Benites, Paulo Eduardo Brandão, André Becker Simões
Saidenberg, Patrícia Braconaro e Eveline Zuniga e das veterinárias do Depave
Adriana Joppert da Silva, Thaís Sanches e Ticiana Zwarg.
De acordo com os pesquisadores, o material
coletado na cloaca das aves é mais preciso como indicador da microbiota
intestinal do que as fezes, já que, em condições normais, os microrganismos
presentes ali são oriundos somente do trato intestinal. Já a análise das fezes
pode levar a falsos resultados pela contaminação do material por bactérias
presentes no ambiente.
Segundo Melville, exames de verificação de
ocorrência e frequência de fungos e bactérias mostraram que em 158 (62,5%) das
253 amostras havia presença de microrganismos. Em 123 delas (77,84%) havia
somente bactérias; em outras quatro somente fungos; e em 31 fungos e bactérias.
“Foram isolados ao menos 15 gêneros de bactérias,
três gêneros de leveduras e quatro gêneros de fungos filamentosos. Alguns deles
apresentam potencial zoonótico, ou seja, podem causar doenças em humanos e em
animais e alguns desses apresentaram resistência a determinados
antimicrobianos”, disse Melville à Agência FAPESP.
Microrganismos mais encontrados
Foram encontradas 13 espécies de Staphylococcus
spp. em 38 amostras. O gênero Micrococcus spp. foi localizado em 29
amostras, enquanto Klebsiella spp. e Escherichia coli estavam em
27 amostras, cada.
Em testes de suscetibilidade a diferentes
antibióticos e quimioterápicos, essas bactérias apresentaram multirresistência
a determinados antimicrobianos. Foram encontradas ainda as bactérias Enterococcus
spp. (em 11 amostras); Enterobacter spp. (10); Streptococcus spp.
(8) e Citrobacter spp. (7).
“Cada microrganismo tem suas peculiaridades e
causa doenças específicas. As bactérias Escherichia coli, por
exemplo, podem estar associadas a distúrbios gastrointestinais.
Espécies de Staphylococcus podem estar associadas a infecções cutâneas,
sinusites, artrites e pneumonias. A transmissão se dá principalmente por meio
do contato com as fezes do animal, com posterior ingestão acidental ou mesmo
inalação de material contaminado”, afirmou a pesquisadora.
Alguns microrganismos encontrados no estudo ainda
não haviam sido mencionados em trabalhos semelhantes. Entre eles, há a Rhodotorula
spp. (levedura oportunista que pode causar doença em paciente imunossuprimido),
Edwardsiella (bactéria associada a meningites e gastroenterites, entre
outras) e Pasteurella multocida (agente associado à cólera aviária).
O estudo confirmou a presença de fungos
filamentosos e leveduras encontrados em estudos anteriores, de outros autores,
tais como Candida spp. (fungo associado a distúrbios gastrointestinais e
respiratórios), Penicillium spp. (fungo associado a doenças como
ceratites, endocardites, entre outras), Mucor spp. (fungo que pode
acometer pacientes imunossuprimidos, causando infecções no trato respiratório e
gastrointestinal, no sistema nervoso ou na pele), Aspergillus spp.
(fungo que acomete principalmente o trato respiratório de aves), e Trichosporon
spp. (patógenos oportunistas que podem acometer pacientes imunossuprimidos).
A pesquisa revelou ainda que é baixo o risco de
transmissão de microrganismos sugeridos para investigação pela Instrução
Normativa do Ibama como Salmonella spp., Cryptococcus spp.
(ausentes nas amostras) e Candida spp. (baixa ocorrência).
Também é baixo o risco de transmissão para
humanos, pelas aves avaliadas, de bactérias E.coli como a Escherichia
coli enteropatogênica (EPEC), Escherichia coli patogênica aviária
(APEC) e Escherichia coli uropatogênica (UPEC). Por outro lado, há risco
de transmissão intra ou interespécies ou introdução no ambiente de E.coli
multirresistentes a antimicrobianos.
Bactérias resistentes
A investigação da microbiota intestinal das aves
antes do processo de soltura é importante, pois pode esclarecer sobre possíveis
riscos relativos à presença de resistência bacteriana aos antimicrobianos. “Ao
serem eliminadas no ambiente, as bactérias multirresistentes a antimicrobianos
podem se multiplicar e infectar diferentes hospedeiros, disseminando a
resistência antimicrobiana entre as bactérias”, explicou Melville.
“Isso pode levar ao desencadeamento de doenças de
difícil tratamento, já que a resistência antimicrobiana reduz as
possibilidades terapêuticas. Por outro lado, muitas bactérias podem se tornar
resistentes a um antimicrobiano, mesmo sem nunca terem tido contato com o
mesmo”, disse a pesquisadora.
O alerta deve ser considerado principalmente
quando se leva em conta que grande parte dos indivíduos que adquirem animais
traficados mantém as aves como animais de estimação em suas residências.
“As pessoas devem ter ciência que podem ser
contaminadas por determinados agentes bacterianos, virais e fúngicos
transportados pelos animais traficados, especialmente os grupos de risco –
idosos, crianças e pessoas imunossuprimidas ou que são submetidas a algum
tratamento imunossupressor”, disse Melville.
Saidenberg esclareceu que, mesmo em liberdade,
aves podem hospedar microrganismos com potencial para causar doenças na própria
espécie, em outros animais e em humanos. No entanto, em geral, observa-se um
equilíbrio entre o microrganismo e o hospedeiro como parte de um processo de
coevolução e que também atua sobre o controle populacional.
A presença de determinado microrganismo não
representa obrigatoriamente que a doença se manifeste. “No entanto, quando são
traficadas, esse equilíbrio pode ser alterado em razão dos elevados níveis de
estresse, das péssimas condições de higiene e alimentação inadequada a que são submetidos
os animais, o que pode acarretar o desencadeamento de doenças infecciosas
causadas por microrganismos com os quais estavam anteriormente em equilíbrio”,
disse Saidenberg.
Legislação
Embora a legislação brasileira determine que
animais silvestres só possam ser criados se adquiridos de criadores autorizados
e que possuam documentação de comprovação de origem, somente em São Paulo, a
Polícia Militar Ambiental apreendeu ou resgatou mais de 187 mil animais
silvestres do tráfico de animais nos últimos 10 anos.
De 2006 a 2012, 82% dos animais confiscados do
tráfico eram aves. Segundo dados do Ibama, a maioria dos pássaros silvestres
comercializados ilegalmente vem das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste e os
estados com o maior mercado consumidor estão na região Sudeste: São Paulo,
Minas Gerais e Rio de Janeiro.
As espécies apreendidas em maior quantidade no
período do estudo foram pixarro (Saltator simillis), canário-da-terra (Sicalis
flaveola), galo-de-campina (Paroaria dominicana),
coleirinho-paulista (Sporophila caerulescens), azulão (Cyanoloxia
brissoni) e pássaro-preto (Gnorimopsar chopi), segundo os
pesquisadores.
Fonte: Agência
FAPESP
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