Novo marco da mineração: quebra
de decoro e financiamento de campanha. Entrevista com Raul do Valle.
“O Marco Legal da Mineração deveria incluir
mecanismos de controle público sobre o ritmo da atividade, para que ela não
fique ao sabor do mercado internacional, e rígidas salvaguardas que garantissem
que o bem-estar da população brasileira fosse assegurado”, adverte o advogado.
“O Código de Ética da Câmara dos Deputados
diz explicitamente que é quebra do decoro parlamentar ‘relatar matéria de
interesse específico de pessoa física ou jurídica que tenha contribuído para o
financiamento de sua campanha eleitoral’”. É com base nesse argumento que a
sociedade civil enviou uma representação à Secretária Geral da Mesa da
Câmara Federal, solicitando que o deputado Leonardo Quintão (PMDB-MG)
deixe a relatoria do novo marco legal da mineração, que irá definir os rumos da
mineração no país para os próximos 40 anos, por ter recebido quase R$ 380 mil
reais de doações de empresas do ramo mineral e metalúrgico. De acordo com Raul
do Valle, “isso significa que, pelo Código de Ética, ele não poderia
ter assumido a relatoria desse projeto”, à medida que a regra do Código
é “simples” e “tenta evitar o conflito de interesses ocasionado pelo
modelo de financiamento privado de campanhas”.
O caso reabre a discussão acerca do financiamento
de campanhas eleitorais por grupos empresariais que têm interesses econômicos
específicos, os quais dependem da aprovação das leis. “O financiamento
empresarial — não o do cidadão — de campanhas é um equívoco tremendo, uma porta
aberta à influência nefasta de interesses particulares em decisões de interesse
público. As empresas têm como objetivo único o lucro, ou seja, a maximização
dos ganhos privados. Enquanto agente de mercado, tudo bem. Agora, quando ela se
torna agente político, financiando e ajudando, de forma decisiva, a eleger
representantes do povo, há uma contradição absoluta, pois estes devem pensar no
bem comum, e não no particular”, pontua, na entrevista a seguir, concedida por
e-mail à IHU On-Line. E acrescenta: “Veja, em 2013 o PT, que vem
lutando pelo financiamento público de campanhas, recebeu quase R$ 80 milhões de
reais de doações de empresas. Não tem como dizer que não há comprometimento da
ação política. Por isso, na minha opinião, o financiamento empresarial deveria
ser totalmente abolido da legislação brasileira, permitindo-se apenas a doação
de cidadãos, dentro de certo limite, e do fundo partidário”.
Valle informa que uma semana após o protocolamento da
representação da sociedade civil, o presidente da Câmara dos Deputados, Henrique
Eduardo Lyra Alves (PMDB-RN) “respondeu que mandou arquivá-la, pois não via
indícios de conflito de interesse! Para ele, ‘o fato narrado não constitui,
evidentemente, quebra de decoro parlamentar’. A alegação é de que o projeto
trata de regras gerais sobre mineração, e que para configurar o conflito de
interesses o projeto deveria tratar de regras específicas para as empresas que
financiaram a campanha do deputado”. E rebate: “Só que toda lei, por princípio,
é uma regra de caráter abstrato, ou seja, que se aplica a todos
indistintamente, não podendo beneficiar ou prejudicar especificamente essa ou
aquela pessoa. A interpretação de Eduardo Alves, portanto, anula a regra
aprovada pelos próprios deputados, pois nunca haveria conflito de interesses na
relatoria de projetos de lei. É, evidentemente, uma interpretação esdrúxula e
que em nada ajuda a melhorar a má imagem que a classe política tem junto à
sociedade”.
Raul do Valle é advogado, mestre em Direito Econômico, formado
pela Universidade de São Paulo – USP. Atua como assessor jurídico do Instituto
Socioambiental – ISA, onde também é coordenador do Programa de Política e
Direito.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em que consiste a representação da
sociedade civil encaminhada contra o relator do novo marco da mineração,
deputado Leonardo Quintão (PMDB-MG)? Quais as razões de encaminhar essa
representação à Secretaria Geral da Mesa da Câmara Federal?
Raul do Valle - O Código de Ética da Câmara dos Deputados
diz explicitamente que é quebra do decoro parlamentar “relatar matéria de
interesse específico de pessoa física ou jurídica que tenha contribuído para o
financiamento de sua campanha eleitoral”. É uma regra simples, que tenta evitar
o conflito de interesses ocasionado pelo modelo de financiamento privado de
campanhas. O deputado Leonardo Quintão é atualmente o relator do Código
de Mineração, a lei que vai regular, pelos próximos 40 ou 50 anos, toda a
atividade mineral no país. Ou seja, é, seguramente, o projeto de lei que mais
interessa a todas as empresas envolvidas diretamente no ramo da mineração.
Ocorre que o deputado teve quase R$ 380 mil reais de doações de empresas do
ramo mineral e metalúrgico (transformação mineral) durante sua campanha eleitoral
de 2010. Isso significa que, pelo Código de Ética, ele não poderia ter
assumido a relatoria desse projeto. Mas o fez. Em função dessa situação
absurda, fizemos uma representação pedindo o seu afastamento da relatoria, para
garantir que tenhamos um parlamentar isento à frente de uma posição tão
relevante para o interesse público.
IHU On-Line – Que relação particular ele tem com
empresas do setor de mineração?
Raul do Valle - Segundo os dados oficiais do Tribunal Superior
Eleitoral – TSE, o deputado recebeu um total de R$ 379.710,00 (trezentos e
setenta e nove mil, setecentos e dez reais) de empresas ligadas ao ramo da
mineração ou da metalurgia (transformação mineral). É o caso da Arcelor
Mittal Brasil, que, conforme informa seu sítio na internet, “além da
fabricação e transformação do aço, a Arcelor Mittal está presente no Brasil
em frentes tão diversas como mineração” . Ou da LGA Mineração e Siderurgia,
com sede em Belo Horizonte, que explora uma mina de ferro em Bom
Sucesso/MG . Foram cinco ao total.
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“O relatório do deputado Quintão veio dentro da
lógica ‘tudo para meus amigos’”
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IHU On-Line – Quais são as implicações do
financiamento de campanhas? Os financiamentos de campanha são uma realidade no
Brasil. Como resolver essa questão?
Raul do Valle - A minha opinião é de que o financiamento
empresarial — não o do cidadão — de campanhas é um equívoco tremendo, uma porta
aberta à influência nefasta de interesses particulares em decisões de interesse
público. As empresas têm como objetivo único o lucro, ou seja, a maximização
dos ganhos privados. Enquanto agente de mercado, tudo bem.
Agora, quando ela se torna agente político,
financiando e ajudando, de forma decisiva, a eleger representantes do povo, há
uma contradição absoluta, pois estes devem pensar no bem comum, e não no
particular. Veja, em 2013 o PT, que vem lutando pelo financiamento
público de campanhas, recebeu quase R$ 80 milhões de reais de doações de
empresas. Não tem como dizer que não há comprometimento da ação política. Por
isso, na minha opinião, o financiamento empresarial deveria ser totalmente
abolido da legislação brasileira, permitindo-se apenas a doação de cidadãos,
dentro de certo limite, e do fundo partidário.
IHU On-Line – O deputado tem recebido críticas por
ser o relator do novo marco legal da mineração e, ao mesmo tempo, ser
financiado pelas empresas desse setor. Como o senhor avalia essas críticas?
Quais critérios explicam a atuação dele enquanto relator do novo marco legal da
mineração?
Raul do Valle - O deputado nunca escondeu que é financiado por
empresas de mineração e que defende o setor mineral. Pelo menos nesse
aspecto ele joga limpo. Ocorre que provavelmente nem ele sabia que havia uma
regra da própria Câmara que proíbe não o financiamento privado, mas a relatoria
de projetos que interessem diretamente seus financiadores. Era uma daquelas
chamadas “letras mortas”, que ninguém usava, pois acabou se
naturalizando o fato de que dentro do Parlamento os interesses econômicos fazem
e desfazem. Tanto que nossa representação foi a primeira da história a pedir a
punição de um deputado por essa razão.
IHU On-Line – A diretoria da Câmara se manifestou
diante da representação encaminhada pela sociedade civil?
Raul do Valle - Sim. Por incrível que pareça, uma semana após o
protocolo da representação, o presidente da Câmara dos Deputados
respondeu que mandou arquivá-la, pois não via indícios de conflito de
interesse! Para ele, “o fato narrado não constitui, evidentemente, quebra de
decoro parlamentar”. A alegação é de que o projeto trata de regras gerais sobre
mineração, e que para configurar o conflito de interesses o projeto deveria
tratar de regras específicas para as empresas que financiaram a campanha do deputado.
Só que toda lei, por princípio, é uma regra de caráter abstrato, ou seja, que
se aplica a todos indistintamente, não podendo beneficiar ou prejudicar
especificamente essa ou aquela pessoa. A interpretação do Eduardo Alves,
portanto, anula a regra aprovada pelos próprios deputados, pois nunca haveria
conflito de interesses na relatoria de projetos de lei. É, evidentemente, uma
interpretação esdrúxula e que em nada ajuda a melhorar a má imagem que a classe
política tem junto à sociedade.
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“A mineração é uma atividade
economicamente importante, mas muito impactante e que ‘não dá segunda safra’”
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IHU On-Line – Juridicamente, como avalia o texto do
novo marco legal da mineração, que está sendo elaborado? Já é possível emitir
algum parecer?
Raul do Valle - O relatório do deputado Quintão veio dentro
da lógica “tudo para meus amigos”. Ele praticamente acaba com a
tentativa de maior controle da atividade por parte do Estado, que estava
presente no projeto enviado pelo Planalto, e não incorpora qualquer
salvaguarda de caráter socioambiental. Pelo contrário, cria uma regra pela qual
toda criação de unidades de conservação, titulação de terras de quilombos,
tombamento de lugares históricos ou qualquer outro ato que vise preservar
partes do território brasileiro teria que ser previamente aprovado pela Agência
Nacional de Mineração. Ou seja, uma agência setorial, que como todas seria
dominada por agentes do setor, teria o poder absoluto de dizer se uma área pode
ou não ser protegida, olhando apenas para o interesse da atividade mineral. Se
essa regra já estivesse valendo, não haveria nem como se começar a bela luta
pela criação do Parque da Garandela, em Belo Horizonte, que
produz água para a cidade, mas que está sobre uma imensa jazida de ferro. Esse
é um exemplo bastante ilustrativo do espírito do relatório: mineração acima de
tudo. Discordamos frontalmente dessa concepção.
IHU On-Line – Juridicamente, o novo marco legal
apresenta alguma preocupação com as famílias que residem próximo às áreas de
exploração da mineração?
Raul do Valle - Muito pouco, de forma totalmente insuficiente. O
que ela faz é apenas distribuir melhor os royalties da atividade,
incluindo municípios afetados pelo empreendimento, e não só os produtores. Mas
isso significa mais dinheiro para a prefeitura, não para os diretamente
impactados. Se quisesse mostrar preocupação, teria incluído o direito de
consulta prévia com as populações afetadas, de forma a se decidir democraticamente
se vale a pena ou não aceitar o empreendimento. Se houvesse essa preocupação
teria previsto um zoneamento ecológico-mineral que estabelecesse áreas livres
de mineração, e outras nas quais ela pode ocorrer apenas em determinadas
condições.
Tudo isso ajudaria a organizar melhor o território
brasileiro, diminuindo inclusive o conflito entre empresas e comunidades e
orientando a atividade para regiões com menos problemas.
IHU On-Line – A Secretaria de Geologia Mineração e
Transformação Mineral do Ministério de Minas e Energia pretende inserir leis
específicas no novo marco legal da mineração, especialmente leis para
substâncias que constam como monopólio da União, minerais e fósseis raros,
águas minerais, mineração em terras indígenas e em faixa de fronteira, entre
outras cláusulas. Como o senhor vê essa proposta e como esses temas estão sendo
discutidos na elaboração do novo marco legal?
Raul do Valle - O tratamento dessas matérias deveria ocorrer em
leis específicas, não dentro do marco geral. Mineração em terras indígenas é um
exemplo. As organizações indígenas, em sua maioria, não querem abrir as terras,
neste momento de ataque a seus direitos, a esse tipo de exploração. Além disso,
a lei deveria trazer uma série de especificidades que não cabem numa regra
geral. Para os outros casos, não tenho uma opinião formada, mas penso que é
mais ou menos o mesmo.
IHU On-Line – Que questões jurídicas são
fundamentais na redação do novo marco legal da mineração, considerando o atual
cenário de extração de minério do país?
Raul do Valle - Ele deveria assumir que a mineração é uma
atividade economicamente importante, mas muito impactante e que “não dá
segunda safra”. Deveria assumir também que o processo de
desindustrialização pelo qual o país está passando, cada vez mais dependente de
exportação de commodities, é algo que deve ser combatido, e não naturalizado.
Portanto, deveria incluir mecanismos de controle público sobre o ritmo da
atividade, para que ela não fique ao sabor do mercado internacional, e rígidas
salvaguardas que garantissem que o bem-estar da população brasileira
fosse assegurado, que áreas ambientalmente importantes não fossem impactadas,
que os danos causados fossem devidamente compensados e indenizados e que a
atividade colaborasse para a ativação do mercado interno. O projeto, no
entanto, ainda está longe disso.
Fotos: 1- geografianovest.blogspot.com.br
2- amazonia.org.br
Fonte: IHU On-line
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