As limitações da ONU: CPD versus IPCC, artigo de José Eustáquio Diniz Alves.
Dividir
e separar a discussão sobre população, desenvolvimento e meio ambiente é não só
um erro conceitual e prático, como um precedente que abre espaço para todo tipo
de esquizofrenia. No passado, a ONU, pressionada pelas divergências
geopolíticas da Guerra Fria, seccionou estes três temas realizando a
Conferência sobre Meio Ambiente Humano, em Estocolmo (1972) e a Conferência
Mundial de População, em Bucareste (1974). Nas Conferências seguintes a divisão
se manteve, como a Rio/92 e o Cairo/94. Se tal estratégia facilitou a aprovação
de resoluções específicas, ela dificultou o tratamento conjunto das questões
relativas a população, economia e ambiente. Pior, este procedimento pode levar
a diferenças de ênfase e até contradições, uma vez que setores da ONU podem
defender uma coisa, enquanto outros podem defender o oposto, surgindo
resoluções simultâneas, mas conflitantes.
Estas
discrepâncias de abordagens e prioridades ficaram novamente expostas, e de
maneira dramática, nesta primeira quinzena de abril de 2014.O relatório
“Mudanças Climáticas 2014: mitigação das mudanças climáticas” do Painel
Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC), divulgado dia 13/04, mostra
que as políticas climáticas consistentes com o cenário para manter o
aquecimento global em até 2 graus Celsius necessitam buscar reduções
significativas nas emissões globais de gases de efeito estufa (GEE).
O
documento diz que as emissões dos gases que provocam o efeito estufa e que
podem estar provocando um aquecimento global cresceram mais rapidamente entre
2000 e 2010 do que em cada uma das três décadas anteriores. A crise econômica
global de 2007/2008 reduziu temporariamente as emissões, mas não mudou a
tendência. O IPCC recomenda que os governos devem agir de forma rápida e
agressiva se quiserem evitar as consequências mais sérias da mudança no clima
mundial e na vulnerabilidade social.
Por
incrível que possa parecer, enquanto o IPCC mostrava os efeitos nocivos do desenvolvimento
e do padrão de produção e consumo adotado no mundo, a reunião da Comissão de
População e Desenvolvimento (CPD), aprovou, no dia 12 de abril (ou seja, apenas
um dia antes da publicação do relatório do IPCC) documento que faz apologia do
desenvolvimento e do crescimento econômico, como nos dois parágrafos abaixo:
“PP6.
Recognizing further that the right to development is a universal and
inalienable right and an integral part of fundamental human rights, and the
human person is the central subject of development, (CPD,
12/04/2014)” “PP9.
Reaffirming that sustainable development is a central goal in itself and that
its economic, social and environmental dimensions constitute key elements of
the overarching framework of United Nations activities, (CPD, 12/04/2014)”.
A
defesa do desenvolvimento e do crescimento econômico, como um direito humano e
um fim em si mesmo, abre espaço para se continuar adotando práticas degradantes
do meio ambiente. Seria preciso colocar algum condicionante ao desenvolvimento
e ao processo de acumulação de lucro, nem que seja como fez a CIPD do Cairo,
que em várias passagens do Programa de Ação condenou: “a degradação ambiental
levada a efeito por sistemas não-sustentáveis de produção e consumo” (CIPD,
1994).
É
certo que a CPD de abril de 2014, pressionada pelos países insulares que estão
sendo ameaçados de extinção pela elevação do nível do mar, também falou das
mudanças climáticas:
“OP15.
Notes with concern that climate change is one of the
greatest challenges of our time, and that the population of all countries,
particularly those in developing countries, are vulnerable to adverse
impacts of climate change threatening their food security and efforts to
eradicate poverty and achieve sustainable development, and urges Governments to
strengthen efforts to address climate change, including mitigation and
adaptation;” (CPD, 12/04/2014).
Porém,
enquanto o IPCC fala da necessidade de mitigação das mudanças climáticas e
outros setores da ONU falam da degradação dos solos, da salinização e
desertificação, da poluição das águas, da acidificação dos oceanos, etc, a
Comissão de População e Desenvolvimento (CPD) ignorou as principais ameaças de
um paradigma de desenvolvimento insustentável ao fazer uma defesa abstrata do
desenvolvimentismo. O modelo de desenvolvimento globalizado e hegemônico vive
uma grande crise financeira e ambiental, que não pode ser ignorada e muito
menos jogada para debaixo do tapete.
A
CPD – além de reforçar as ideias do conservadorismo moral ao não incluir os
direitos sexuais e as novas formas de família – também reforçou a concepção
homocêntrica ao dizer que a pessoa humana é o objeto central do
desenvolvimento, ignorando os direitos da Terra e os direitos dos animais e das
outras espécies. Contudo, os direitos humanos só serão efetivos quando se
respeitar os direitos da natureza e dos demais seres vivos do Planeta.
O
crescimento contínuo das atividades antrópicas tem reduzido o espaço para a
vida não humana e tem colocado um forte estresse sobre os recursos naturais,
além de aumentar a poluição, o lixo, o esgoto e os resíduos sólidos. A
capacidade de carga da Terra e as fronteiras planetárias já foram ultrapassadas
e a necessidade de um novo equilíbrio sustentável é inadiável.
Para
piorar o quadro, a ONU não tem poder para implementar suas decisões e tudo
depende da boa vontade dos países que possuem soberania para aplicar ou
rejeitar as recomendações. O mundo passa por uma crise de governança, como
mostrou o sociólogo George Martine em artigo do
EcoDebate de 02/04/2014,
que chama a atenção para a urgência da revitalização do sistema das Nações
Unidas.
Assim,
sinais contraditórios sobre as soluções a serem adotadas só dificultam o
enfrentamento dos graves problemas que o mundo tem pela frente. Como mostrou o
relatório do IPCC, ações urgentes são necessárias para mudar a matriz
energética e evitar a depleção ambiental, reduzindo os riscos de conflitos
sociais e o aumento dos fenômenos da fome, pobreza, enchentes, migrações
indesejadas e refugiados do clima.
Referências:
IPCC:
Las emisiones de gases de efecto invernadero se aceleran a pesar de las medidas
para reducirlas, Berlin, 13 de abril de 2014.
CPD: Commission on Population and Development
forty-seventh session, 7 a 11 de abril de 2014.
MARTINE,
G. As Grandes Conferências da ONU, o Desenvolvimento e a Governança Global,
EcoDebate, 02/04/2014.
José
Eustáquio Diniz Alves, Colunista do Portal EcoDebate, Doutor em demografia
e professor titular do mestrado em População, Território e Estatísticas
Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE; Apresenta
seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail: jed_alves@yahoo.com.br
Fonte: EcoDebate
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