A Copa do Mundo contribuiu para o aumento da desigualdade na sociedade sul-africana, entrevista com Eddie Cottle.
No início de fevereiro, jornais da grande mídia
noticiaram que a Presidência da República, preocupada com a possibilidade de
que ocorram protestos durante a Copa do Mundo, em junho – e com seus eventuais
reflexos nas eleições de outubro – prepara uma campanha para tentar convencer a
população dos benefícios da Copa para o país. Mas é pouco provável que a
campanha adote como estratégia mirar-se no exemplo da África do Sul, que sediou
o evento há quatro anos. Isso porque, como afirma o sindicalista sul-africano
Eddie Cottle, diretor de políticas e de campanhas para a África e Oriente Médio
da Internacional dos Trabalhadores da Construção e da Madeira (BWI, na sigla em
inglês), ao contrário do que foi prometido antes do evento, a Copa do Mundo foi
um desastre para o país africano, acarretando um rombo bilionário nos cofres
públicos, superexploração de trabalhadores e aumento da desigualdade social.
Nesta entrevista, Eddie fala sobre o verdadeiro legado que a Copa de 2010
deixou para os sul-africanos, tema de seu livro South Africa’s World Cup: A
Legacy For Whom? (em português, Copa do Mundo da África do Sul: legado para
quem?).
O termo “legado” é usado frequentemente
para justificar os altos investimentos em infraestrutura nas cidades-sede da
Copa do Mundo. Qual foi o legado da Copa de 2010 para a África do Sul?
Quando o termo ‘legado’ é usado pelos Comitês das
Propostas, FIFA, Comitês Organizadores Locais, autoridades governamentais e
think tanks econômicos tradicionais, presume-se ser inteiramente positivo, como
se os benefícios do crescimento econômico e da reordenação urbana fluíssem
naturalmente para as comunidades. São mentiras deslavadas, envoltas numa
retórica de desenvolvimento.
O documento da proposta da África do Sul para
sediar a Copa, um documento secreto financiado por multinacionais com interesse
direto nos jogos, continha cálculos falhos com base em guess-estimates [numa
tradução livre, estimativas baseadas em adivinhação], que não conseguem
contabilizar aumentos de custos e muito menos as receitas para o Estado e para
a sociedade.
A estimativa de custo inicial foi calculada em
2,3 bilhões de randes [moeda sul-africana] a serem pagos pelo governo
sul-africano, em grande parte para financiar os estádios e infraestrutura
necessária. Ao mesmo tempo, projetou-se que a África do Sul iria ter um
adicional de 7,2 bilhões de randes em receitas tributárias relacionadas ao
evento. No entanto, em 2010 estimou-se que o custo (e é provável que seja muito
mais elevado) para o governo da África do Sul foi de 39,3 bilhões de randes –
um aumento de 1.709% em relação à estimativa original, uma enorme perda
financeira para o país.
Após a Copa, houve silêncio total sobre as receitas fiscais do governo. A exceção foi a afirmação feita pela South African Revenue Services [a Receita Federal sul-africana] de que a Copa do Mundo nunca foi pensada como uma forma de angariar receitas. O governo sul-africano agiu como fiador da acumulação de capital para satisfazer a ganância da FIFA e seus parceiros comerciais. No fim das contas, a FIFA saiu com um lucro de 3,4 bilhões de dólares, livre de impostos, o maior da história da Copa do Mundo. Sediar a Copa do Mundo foi uma enorme perda financeira para a África do Sul.
E para as construtoras envolvidas nas
obras da Copa?
Apesar da crise econômica mundial de 2008-2009,
as cinco maiores empresas de construção da África do Sul se beneficiaram
bastante com os projetos de infraestrutura da Copa do Mundo e tiveram um lucro
médio de 100% de 2005 a 2009, depois de sofrerem perdas substanciais até 2004.
A remuneração de CEOs [diretor-executivo de uma empresa ou instituição], em
média, subiu mais de 200% desde 2004. A brecha salarial no setor da construção
incrementou-se de 166 em 2004 para 285 em 2009. Os números mostram quantos anos
um trabalhador teria que trabalhar para receber o que um CEO leva para casa num
ano, em média. A Copa do Mundo contribuiu para o aumento da desigualdade na
sociedade sul-africana.
Que impacto o evento teve na geração de
empregos no país?
Com uma taxa de desemprego oficial de 24%, um
grande exército de reserva de mão de obra (incluindo desempregados, informais,
trabalhadores autônomos e migrantes) foi absorvido pelo mercado de trabalho
para a produção do espetáculo esportivo e foram demitidos às vésperas do
evento, contribuindo para a perda de 627 mil postos de trabalho na economia
como um todo.
No setor da construção,foram contratados 1,117
milhões de trabalhadores nos setores formal e informal em 2009; 1,006 milhões
estavam empregados quando começou a Copa do Mundo na África do Sul, uma perda
de 110 mil empregos na construção, no período. No quarto trimestre de 2009, a
taxa oficial de desemprego era de 24,3%, e em junho de 2010, tinha atingido
25,2%.
Já no setor de turismo e indústrias correlatas,
houve um crescimento na contribuição para o Produto Interno Bruto nos períodos
antes e depois da Copa do Mundo, passando de 67,14 milhões de randes em 2008
para 84,3 milhões de randes em 2011. Mas se compararmos o número de empregados
diretamente no setor de turismo antes da Copa do Mundo, em 2008, que foi de
606.934 trabalhadores, com os três anos imediatamente anterior (2009), durante
(2010) e após a Copa do Mundo (2011), vemos que o emprego foi na realidade mais
baixo, apesar do aumento nos investimentos, mesmo durante o mês em que a Copa
do Mundo aconteceu. Havia 52.944 trabalhadores a menos em 2009, 39.556 a menos
em 2010 e 8.502 trabalhadores a menos empregados no setor turismo em 2011 do
que havia em 2008. Ou seja, o efeito multiplicador de emprego projetado pela
Grant Thornton (um think tank econômico internacional) desmoronou, porque, em
vez de um aumento do emprego através de maiores investimentos, o que houve foi
uma diminuição no emprego direto. O que isso sugere é que houve um aumento da
taxa de exploração dos trabalhadores empregados nas indústrias do turismo e
afins, que tiveram que trabalhar mais horas ou a um ritmo de trabalho maior –
ou ambos – num contexto de aumento do fluxo de turistas para a África do Sul
durante a Copa.
A Copa do Mundo na verdade é um eufemismo para o
que eu tenho chamado de “complexo de acumulação esportiva da FIFA”, que
encabeça a exploração das nações anfitriãs e seus trabalhadores. A FIFA dirige
uma classe comercial globalizada que coloca pressões significativas sobre os
produtores, que por sua vez se dedicam à repressão salarial agressiva dos
trabalhadores. Na África do Sul, por exemplo, Zakumi, o mascote da Copa, foi
produzido por trabalhadores chineses trabalhando em turnos de 13 horas, que
receberam apenas 3 dólares por dia.
No Brasil, tivemos várias greves durante
a construção de estádios para a Copa do Mundo. Isso se deu também na África do
Sul?
A primeira greve registrada em uma construção da
Copa do Mundo começou no Estádio Green Point, em 27 de agosto de 2007,
iniciando uma onda de greves que resultou em acordos com os empregadores por
todo o país. Em 8 de julho de 2009, 70 mil trabalhadores da construção civil
fizeram uma greve nacional por uma semana, e isso foi sem precedentes e
significativo em vários aspectos. Não só foi esta a primeira greve nacional de
trabalhadores da construção civil nas obras da Copa do Mundo mas também houve
uma unidade apresentada pelos trabalhadores e sindicatos em um setor composto
por vários sindicatos concorrentes de três federações com bases ideológicas
diferentes. Os sindicatos recrutaram 27.731 trabalhadores no período,
aumentando a sindicalização em 39,4 % de 2006 para 2009.
No Brasil, de fevereiro de 2011 a abril de 2013,
25 greves foram identificadas, envolvendo cerca de 30 mil trabalhadores nos
estádios da Copa do Mundo. No geral, a onda de greves foi um sucesso, uma vez
que conquistou a melhoria de salários e condições de trabalho para
trabalhadores da construção civil do Brasil e reforçou a confiança sindical. As
conquistas, variando um pouco em diferentes locais, incluíram um aumento de 30%
a 70% no vale-refeição, aumento no pagamento de horas extras entre 60% e 85%
nos dias de semana e 100% nos finais de semana, subsídios de transporte, seguro
de saúde e bônus. Estas greves não só foram localizadas nas obras da Copa do
Mundo, mas também se espalharam para o resto do setor da construção. Em 2012,
estima-se que mais de 500 mil trabalhadores entraram em greve por melhores
condições de trabalho nos canteiros de obras em nível nacional.
Mas devido ao atraso nos projetos da Copa do
Mundo, as empreiteiras estão pressionando os trabalhadores cada vez mais para
acelerarem a produção e a entrega dos projetos. Já aconteceram vários acidentes
fatais [Foram sete no total: duas mortes em São Paulo, uma em Brasília e quatro
em Manaus]. O aumento da taxa de exploração através do aumento do ritmo de
trabalho, acordos de horas extras e produtividade, significa que os
trabalhadores terão que cumprir ainda com os prazos para entrega da
infraestrutura e não receberão a remuneração completa porque, na prática,
haverá uma redução no período de emprego. Enquanto isso, as empreiteiras
colherão os megalucros do valor total do projeto a preços inflados, apesar de o
período de produção da infraestrutura da Copa ser mais curto. No Brasil, como
na África do Sul, o efeito multiplicador simplesmente falha na transformação do
investimento feito em empregos criados e a redistribuição da renda, porque o
enorme superávit de fundos públicos é absorvido pela destrutiva acumulação
privada.
Qual é a situação atual dos estádios que
foram construídos para a Copa do Mundo da África do Sul?
Como previsto, nenhum dos estádios da Copa do
Mundo é autossustentável, o que significou um aumento nos impostos municipais e
mais recursos do orçamento nacional foram solicitados pelos administradores dos
estádios para gerenciá-los. Com isso há menos recursos disponíveis para a área
social. Este é um problema sério que o Brasil vai ter de enfrentar em breve.
Esse problema tem sido discutido muito na mídia e no parlamento, mas a questão
da demolição de alguns dos estádios foi evitada, uma vez que seria um grande
constrangimento político para o Congresso Nacional Africano, o partido no poder
na África do Sul.
O governo sul-africano chegou a abrir uma
investigação sobre a formação de cartéis de empresas de construção envolvidas
nas obras da Copa de 2010. Qual foi o resultado dessas investigações?
Há muitas evidências de que o setor da construção
está propenso a formar cartéis. O relatório de 2008 do Comitê de Concorrência
da Organização para a Cooperação Econômica e Desenvolvimento (OCDE) sobre o
setor da construção chegou a essa conclusão. Entre os 19 países incluí-dos
nesta mesa-redonda da OCDE, a África do Sul apresentou o seu relatório sobre os
enormes aumentos dos estádios da Copa do Mundo de 2010, sendo que, na época,
havia suspeitas de licitações fraudulentas. Em 17 de julho de 2013, no tribunal
da Comissão de Concorrência da África do Sul foi apresentada uma estimativa
conservadora de que as empresas de construção obtiveram “lucros indevidos” de
476 milhões de dólares com as obras para a Copa do Mundo de 2010 e outros
projetos. Elas foram consequentemente multadas num total de 152 milhões de
dólares. As empresas de construção que não concordaram com o acordo agora
correm risco de serem processadas.
E pelo que você vem acompanhando no
Brasil, há base para se abrir uma investigação sobre a formação de cartéis de
construtoras para as obras da Copa 2014?
Um claro indicador de atividade de cartel são os
enormes aumentos de custos em relação às estimativas originais. A fonte mais
confiável para as estimativas de custos originais de cada um dos estádios é o
documento da candidatura do Brasil, que não é tornado público. No entanto, uma
vez que o documento da candidatura foi submetido à FIFA até 31 de julho de 2007
e a FIFA realizou sua visita de inspeção em 23 de agosto de 2007, é razoável
supor que o valor de 1,1 bilhão dólares para todos os estádios que está neste
relatório reflete os números originais do documento de candidatura. O relatório
de inspeção da FIFA de 2007, portanto, subestimou bastante o custo para os
estádios da Copa do Mundo no Brasil, que aumentou 327% até 2013, atingindo 3,6
bilhões de dólares.
O custo dos estádios de Brasília e do Rio de
Janeiro mais do que duplicou desde 2010 e totalizam 1,3 bilhões de dólares. Só
esses dois estádios, portanto, custam mais do que a estimativa original para
todos os estádios. Ao ritmo atual de aumentos dos custos, é provável que a Copa
do Mundo do Brasil seja a mais cara da historia.
Há motivos suficientes para o governo brasileiro
abrir uma investigação completa sobre as operações de um cartel de construção:
o Relatório do Comitê de Concorrência da OCDE, a evidência do Relatório da
Comissão de Concorrência da África do Sul, especialmente em relação à Copa do
Mundo da FIFA 2010, e a dramática escalada de custos dos estádios no Brasil
quando comparados com o Relatório da Equipe Inspeção da FIFA em 2007.
Na sua análise, que mudanças precisam ser
feitas para que a preparação para grandes eventos como a Copa do Mundo não
implique os problemas que foram registrados na África do Sul e agora no Brasil?
A Copa do Mundo é o principal motor de um
complexo de acumulação capitalista no esporte. Todos os principais problemas
observados na preparação são resultados diretos da privatização do jogo.
Qualquer mudança real só pode vir através de uma plataforma para desenvolver um
modelo público ou de nacionalização do jogo a longo prazo. No curto prazo, a
sociedade civil tem de fazer alianças e garantir que os trabalhadores estejam
na liderança dessas lutas, pois são eles que têm sua força de trabalho
explorada e suportam o peso de condições precárias e inseguras de trabalho. As
lutas atuais dos brasileiros são muito bem-vindas, mas exigem níveis mais
profundos de coordenação, incluindo a expansão das formas de resistência para
incluir boicotes de determinados produtos ou até mesmo de jogos sempre que
possível.
Entrevista concedida à André Antunes (Escola
Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz) e publicada na Revista
Poli N° 33 de março/abril de 2014.
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