Enchentes: de Sobradinho a Santo
Antônio e Jirau, artigo de Roberto Malvezzi (Gogó).
Enchente do Rio Madeira, em Porto Velho,
capital de Rondônia. Foto: Marcos Freire/ Secom Rondônia / Fotos Públicas
A cena final do filme “Apocalypse Now” nivela o homem primitivo que mata um
búfalo a golpes de facão – num ritual pagão – a um soldado americano que
elimina outro soldado americano também a golpe de facão. Além do mais, a
eliminação era uma operação secreta do próprio exército americano. O recado de
Francis Coppola era óbvio: as tecnologias evoluíram, mas o ser humano continua
tão primitivo quanto seus ancestrais da pedra lascada no trato aos seus
semelhantes.
Vendo as enchentes que acontecem no rio Madeira,
por causa da construção das barragens, impossível não relembrar as monumentais
enchentes acontecidas no São Francisco quando da construção da barragem de Sobradinho,
ainda na década de 70 do século passado. A inundação das cidades, a remoção
caótica da população, a total falta de controle das corporações técnicas sobre
o volume das águas, a tensão emocional e psicológicas das populações impactas
por danos físicos, morais, econômicos e emocionais para todo o sempre. Pior dos
piores, o cinismo oficial que lava as mãos diante da tragédia que ele mesmo
provocou.
Não há o que aprender. São fatalismo acabados,
com crueldade de um abutre que corrói o fígado de Prometeu pelos séculos dos
séculos sem fim. As empresas, os políticos, as corporações técnicas não
precisam aprender e nem querem mudar. O Movimento dos Atingidos por Barragens
(MAB) estima que um milhão de pessoas no Brasil experimentou e experimenta esse
tipo de indiferença, algo próximo dos leões que eliminam os filhotes de seu
antecedente quando conquista uma nova alcateia.
A mídia, os políticos, as corporações técnicas se
expressam pela voz do consórcio que constrói Belo Monte: “depois que essa obra
estiver concluída, ninguém vai se lembrar desses detalhes”. Eles, de fato, não.
O povo jamais voltará a ter sossego depois da construção de uma barragem.
Só uma vez na vida vi um técnico considerar o
desastre ambiental e social que está por detrás da construção de uma obra como
essa para garantir a energia para o capital. Foi o hidrólogo João Abner. Num
debate sobre a Transposição de águas do São Francisco, ele disse: sou grato ao
povo do São Francisco que pagou horrores para que eu pudesse ter energia
elétrica na minha casa no Rio Grande do Norte.
A metáfora de Coppola continua de pé. Criamos
tecnologias, leis, contratos e uma parafernália infernal para vivermos em
sociedade. Entretanto, quando se trata de definir interesses, os donos do poder
são tão primitivos como seus ancestrais que sacrificavam seres humanos para
saciar os deuses sanguinários de suas religiões.
Roberto Malvezzi (Gogó), Articulista do Portal EcoDebate,
possui formação em Filosofia, Teologia e Estudos Sociais. Atua na Equipe
CPP/CPT do São Francisco.
Fonte: EcoDebate
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