Biopirataria X
internacionalização: a utilização econômica da biodiversidade. Entrevista com
André de Paiva Toledo.
“Não apenas as riquezas naturais da Amazônia, mas
dos trópicos de maneira geral, têm sido sistematicamente exploradas como
matéria-prima do setor de produção econômica de tipo capitalista, implementado
globalmente a partir do século XVI”, denuncia o advogado.
Foto: Envolverde
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A exploração dos recursos naturais sem autorização
do poder público, conhecida como biopirataria, é um processo recorrente na
história do Brasil. Entretanto, o país “não rompe com esse modelo,
porque há nele uma relação de interdependência econômica internacional que cria
uma série de obstáculos a um rompimento absoluto. Ou seja, os demais Estados,
frequentemente apoiados por setores da própria sociedade brasileira e em vista
de seus interesses, pressionam o Brasil no sentido de se manter nessa
condição”, explica André de Paiva Toledo, em entrevista concedida à
IHU On-Line por e-mail.
Entre as implicações dessa atividade ilegal, Toledo
destaca o impedimento do Estado de origem dos recursos naturais em exercer
direitos soberanos no processo de utilização econômica dos produtos gerados a
partir da biopirataria. “Isso faz com que o Estado de origem não apenas deixe de
se beneficiar quando da seleção de espécimes, mas seja obrigado a adquirir os
produtos sem qualquer transferência de recursos financeiros e biotecnológicos”,
acentua.
André de Paiva Toledo, que ministrará a palestra Biopirataria
e Direito Internacional no I Congresso de Direito, Biotecnologia e
Sociedades Tradicionais, que ocorre hoej e amanhã, na Unisinos,
também chama a atenção para a discussão acerca da internacionalização da
Amazônia que, apesar de ser positiva, “não é discutida nos termos da teoria do
patrimônio comum da humanidade”. E esclarece: “Faz-se de maneira implícita nos
fóruns internacionais de normalização do Direito Internacional do Comércio,
especialmente no que concerne ao direito de propriedade intelectual. Atualmente
a internacionalização da Amazônia é feita de maneira paulatina, com a
concessão, por parte de Estados do Norte, de registro de patente de
elementos que fazem parte do ecossistema amazônico. Pode-se dizer que esta
forma de internacionalização é muita menos ruidosa que a primeira e,
consequentemente, mais difícil de se perceber. Daí sua eficiência”.
André de Paiva Toledo é doutor em Direito pela Université
Panthéon-Assas Paris II. É professor de Direito da Escola Superior Dom
Helder Câmara e da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais –
PUC Minas.
Foto: Ache Tudo e Região
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Confira a entrevista.
IHU On-Line – O senhor diz que a exploração
sistemática das riquezas naturais da Amazônia iniciou ainda no século XV e,
desde então, não foi cessada. Quais são os mecanismos de exploração envolvidos
nesse processo e por que o Brasil não rompe com ele?
André de Paiva Toledo - Não apenas as riquezas naturais
da Amazônia, mas dos trópicos de maneira geral, têm sido sistematicamente
exploradas como matéria-prima do setor de produção econômica de tipo
capitalista, implementado globalmente a partir do século XVI. A menção
ao século XV é feita para coincidir com o início das grandes navegações,
que permitiram aos europeus, especialmente aos ibéricos, conquistar novos
territórios de onde pudessem obter matéria-prima para sua burguesia. O Brasil
entrou nesse sistema em 1500, quando aqui aportou Pedro Álvares Cabral,
e tem permanecido um dos grandes parceiros do setor capitalista industrial ao
cumprir a função de fornecedor de matéria-prima, de mão de obra barata e de
mercado consumidor de mercadorias produzidas no exterior. A Amazônia,
por sua vez, pelas dificuldades de acesso humano, é mais especificamente
mencionada nesse contexto no século XIX, com o fornecimento de borracha
para a indústria automobilística, especialmente dos Estados Unidos.
Nos séculos seguintes, com a queda da demanda por
borracha amazônica, esse importante espaço sul-americano transformou-se em
fornecedor de matéria-prima para a produção biotecnológica, fundada das indústrias
farmacêutica, cosmética e alimentar. O Brasil não rompe com esse modelo
porque há nele uma relação de interdependência econômica internacional que cria
uma série de obstáculos a um rompimento absoluto. Ou seja, os demais Estados,
frequentemente apoiados por setores da própria sociedade brasileira e em vista
de seus interesses, pressionam o Brasil no sentido de se manter nessa
condição. O Golpe de Estado contra o governo de João Goulart,
por exemplo, que neste mês completa 50 anos, é um exemplo de como é difícil
para um país detentor de riquezas naturais (biológicas ou não) se opor
soberanamente a um sistema econômico internacional de tipo colonial. Isso sem
mencionar o fato de que boa parte da exploração dos recursos naturais da Amazônia
é feita à margem do Direito, sem que o Estado brasileiro consiga controlar.
IHU On-Line – Como e por que se discute a
internacionalização da Amazônia? Quais são os discursos referentes a essa
temática?
André de Paiva Toledo - A internacionalização da Amazônia
foi discutida a partir do início da década de 1980, quando, diante do acúmulo
de catástrofes ambientais e do desenvolvimento cada vez mais veloz de produtos
biotecnológicos (farmacêuticos, cosméticos e alimentares), propôs-se que a
biodiversidade da Amazônia fosse considerada uma espécie de patrimônio
comum da humanidade do qual toda a coletividade global pudesse usufruir
livremente, seja como reserva florestal mundial, seja como celeiro de recursos
para a bioindústria. Discute-se essa questão de forma tão apaixonada porque a
internacionalização de um determinado objeto significa, na prática, a extinção
da soberania dos Estados em que ele se encontra, como é o caso, por exemplo, do
espaço sideral da Antártida e do alto-mar. A intenção era retirar dos
Estados amazônicos (Brasil, Bolívia, Peru, Equador,
Colômbia, Venezuela) a competência de administrar soberanamente
aqueles espaços. Hoje, a questão da internacionalização da Amazônia não
é discutida nos termos da teoria do patrimônio comum da humanidade. Faz-se de
maneira implícita nos fóruns internacionais de normalização do Direito
Internacional do Comércio, especialmente no que concerne ao direito de
propriedade intelectual. Atualmente a internacionalização da Amazônia é
feita de maneira paulatina, com a concessão, por parte de Estados do Norte,
de registro de patente de elementos que fazem parte do ecossistema amazônico.
Pode-se dizer que esta forma de internacionalização é muito menos ruidosa que a
primeira e, consequentemente, mais difícil de se perceber. Daí sua eficiência.
“Boa parte da exploração dos recursos naturais da
Amazônia é feita à margem do Direito sem que o Estado brasileiro consiga
controlar”
IHU On-Line – Em seu livro, menciona que o discurso
da internacionalização encobre a desnacionalização das riquezas dos Estados
sul-americanos. Nesse contexto, como a questão indígena e os saberes
tradicionais são tratados diante desse discurso de internacionalização?
André de Paiva Toledo - Se pensarmos em termos do Direito
Internacional, os conhecimentos tradicionais dos indígenas associados aos
recursos biológicos recebem o mesmo tratamento, isto é, estão submetidos à
soberania do Estado titular da soberania territorial. Grosso modo,
especialmente diante do discurso sobre a internacionalização, o patrimônio cultural
indígena é tratado como parte do conceito de biodiversidade, inclusive por
estarem intrinsecamente relacionados aos recursos da fauna e da flora, de modo
que muitas vezes não possa tratá-los separadamente. Entretanto, em termos mais
específicos, por serem objetos culturais, há evidentemente algumas distinções
de tratamento entre eles e os objetos essencialmente naturais.
Não é à toa que diversas normas jurídicas
internacionais prevejam a participação obrigatória dos possuidores desses
conhecimentos tradicionais em todo projeto de utilização levado a cabo pelo
Estado titular da soberania territorial. Assim, quando ocorre, em outro país, o
registro da propriedade intelectual de um elemento dos saberes indígenas,
está-se diante do mesmo fenômeno já mencionado da internacionalização pela
privatização, ou seja, um outro Estado concedeu soberanamente a alguém a
titularidade do direito de propriedade intelectual sobre aquele objeto e,
consequentemente, coloca à sua disposição todas as ferramentas de proteção da propriedade
privada, tanto no âmbito interno quanto no âmbito internacional. Falamos em
internacionalização porque, em termos do Direito Internacional,
ocorrerá, neste caso, uma dupla incidência de soberanias sobre o mesmo objeto.
“A biopirataria é a transferência transfronteiriça
de um recurso biológico sem o consentimento prévio fundamentado do Estado de
origem”
IHU On-Line – A internacionalização da Amazônia
está na pauta das preocupações nacionais prioritárias? Que ações são realizadas
nesse sentido?
André de Paiva Toledo - O Brasil sempre esteve
preocupado com a internacionalização da Amazônia. Trata-se de uma
preocupação — como você bem mencionou — nacional, pois vemos, nos últimos 30,
40 anos, todos os governos se dedicando à questão, sejam militares, sejam
civis, de direita e de esquerda. Percebe-se que a proteção da soberania
nacional na Amazônia é um ponto que une bem a sociedade brasileira,
independentemente de seu viés político. Além disso, o Brasil é
tradicionalmente um país muito atuante e respeitado na comunidade
internacional. Quando, por exemplo, encerrou-se a iniciativa de
internacionalizar a Amazônia pela aplicação da teoria do patrimônio comum da
humanidade, no início da década de 1990, o Brasil foi um dos Estados que
exigiram a reafirmação da soberania nacional sobre os recursos biológicos,
feita no texto da Convenção sobre Diversidade Biológica, resultado dos
debates da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento, ocorrida justamente no Brasil, mais especificamente
na cidade do Rio de Janeiro.
Atualmente o Brasil faz parte do Grupo de
Países Megadiversos Afins, isto é, uma reunião dos Estados com grande
riqueza biológica, cujo propósito é coordenar ações internacionais de combate à
biopirataria e, consequentemente, à internacionalização pelo registro da
propriedade intelectual. Em conjunto com outros países ricos em biodiversidade,
o Brasil tem liderado as posições em favor da reforma do sistema
internacional da propriedade intelectual tanto na Organização Mundial da Propriedade
Intelectual quanto na Organização Mundial do Comércio.
IHU On-Line – Como o processo de biopirataria
ocorre no Brasil? Quais são os principais atores envolvidos nesses casos e
quais são as implicações sociais, ambientais e econômicas desse processo?
André de Paiva Toledo - O processo de biopirataria
acontece no Brasil de maneira semelhante àquela ocorrida em outros
países ricos em biodiversidade. Realiza-se, sem qualquer autorização por parte
do Poder Público, nos locais biologicamente estratégicos (na Amazônia,
por exemplo), trabalho de campo de seleção de espécimes interessantes para a
bioindústria, muitas vezes — mas não necessariamente — com auxílio de membros
de comunidades indígenas contratados para facilitar a identificação dos
recursos. Esse trabalho de campo é liderado por um especialista que sabe
identificar as potencialidades bioquímicas da fauna e da flora. Este
especialista pode ser agente do próprio laboratório ou instituto de pesquisa
estrangeira, muitas vezes travestido de missionário ou ativista; pode ser
membro de organização não governamental de proteção ambiental com atividade
naquele ecossistema; pode ser inclusive um pesquisador nacional contratado pelo
laboratório ou instituto de pesquisa. Feito o trabalho de campo, os espécimes
selecionados são acondicionados de forma a facilitar sua remessa para o
exterior. Esta etapa é realizada normalmente longe do local de trabalho de
campo, sem a participação de membros das comunidades indígenas. Deve-se colocar
os espécimes em embalagens que impeçam sua identificação quando da remessa para
o exterior. Esta se dá evidentemente de forma clandestina, utilizando-se
sistemas próprios do tráfico de drogas, armas e pessoas, o que implica a
utilização de rotas alternativas e, eventualmente, a cooptação de agentes de
controle de fronteira.
Ocorre que, muitas vezes, o que é contrabandeado
são elementos muito pequenos da biodiversidade como, por exemplo, folhas,
pétalas ou pólen, que são facilmente escondidos e dificilmente controlados na
saída do país. A grande implicação da biopirataria é socioeconômica. Ao impedir
que o Estado de origem do recurso exerça seus direitos soberanos no processo de
utilização econômica, a biopirataria acaba por privar esse Estado de
compartilhar dos benefícios advindos da produção e comercialização de
medicamentos, cosméticos e alimentos. Isso faz com que o Estado de origem não
apenas deixe de se beneficiar quando da seleção de espécimes, mas seja obrigado
a adquirir os produtos sem qualquer transferência de recursos financeiros e
biotecnológicos. É a face mais radical do neocolonialismo, em que os países
tropicais têm suas riquezas naturais levadas clandestinamente para os países
desenvolvidos, os quais, por sua vez, transformam tais riquezas em mercadorias
a serem posteriormente vendidas àqueles. O Estado de origem fornece
matéria-prima e mão de obra a baixo custo e importa os produtos
industrializados com o preço de mercado.
“Não se pode confundir biopirataria com
internacionalização, embora os termos sejam conexos à utilização econômica da
biodiversidade”
IHU On-Line – Como, juridicamente, os casos de
biopirataria são tratados no país?
André de Paiva Toledo - No âmbito interno, o Brasil
não tem atuado de forma tão interessante quanto externamente. Isso se deve
muito ao fato de que a biopirataria é um problema de abrangência internacional.
Isso não significa, entretanto, que internamente não se deva dar um tratamento
mais específico à questão. Pelo contrário, vimos que o início do fenômeno da
biopirataria inicia-se no território do Estado prejudicado, sendo necessária
uma legislação interna capaz de combater eficazmente a questão enquanto ela se
dá no interior de suas fronteiras.
No Brasil, há a Lei de Crimes
Ambientais (Lei 9.605/1998) que ainda não tipifica o crime de biopirataria,
o que dificulta sua repressão. Outra norma ambiental importante é a Medida
Provisória 2.186/2001, cujo objetivo é proteger o patrimônio genético
brasileiro ao regulamentar internamente alguns aspectos da Convenção sobre
Diversidade Biológica de 1992. Nesta Medida Provisória, há menção expressa
de que o acesso aos recursos genéticos localizados no território brasileiro
depende de autorização expressa da União.
Pode-se encontrar nesta norma também a previsão de
medidas de participação do Estado, titular da soberania sobre os recursos
biológicos, nos lucros das empresas que utilizarem material obtido no
território brasileiro. Se o Poder Legislativo é lento para modernizar o
Direito brasileiro sobre a biopirataria, o Poder Executivo, fora a medida provisória
mencionada, tem agido por meio do Ministério do Meio Ambiente para que sejam
adotadas medidas mais claras sobre o assunto. De fato, o Conselho de Gestão
do Patrimônio Genético, em conjunto com o Instituto Nacional de
Propriedade Intelectual, tem trabalhado para fixar um regime que impeça a
concessão de patente sobre produto derivado da biodiversidade sem a
apresentação prévia da autorização da União.
“A biopirataria só será de fato eficazmente
combatida quando houver a modificação dessas normas internacionais comerciais”
IHU On-Line – Como a biopirataria é
tratada no âmbito do Direito Internacional?
André de Paiva Toledo - Internacionalmente, a
biopirataria é mal definida. Alguns entendem que ela significa a apropriação do
recurso biológico pelo sistema internacional de propriedade intelectual. Não
concordamos com isso. A biopirataria é a transferência transfronteiriça de um
recurso biológico sem o consentimento prévio fundamentado do Estado de origem,
independentemente do que se vai fazer com o dito recurso posteriormente. Mesmo
que não haja qualquer utilização econômica e, por consequência, qualquer
concessão de direitos de propriedade intelectual, a biopirataria existe como
fato consolidado. Como vimos, esta concessão de patente significa a internacionalização
do recurso pela dupla incidência de soberanias. Não se pode confundir
biopirataria com internacionalização, embora os termos sejam conexos à
utilização econômica da biodiversidade. Apesar de falta de consenso do que seja
biopirataria internacionalmente, é fato que o Direito Internacional
assegura e reafirma a soberania do Estado sobre os recursos biológicos de seu
território. Logo, este Estado deve ser sempre consultado quando houver
interesse em ter acesso aos seus recursos naturais. Entretanto, a brecha que
ainda existe para o fomento da biopirataria é aquela que o Direito
Internacional do Comércio abre.
Quando a Organização Mundial do Comércio não
impede o patenteamento de seres vivos, ou quando não exige a apresentação do
certificado de origem do recurso biológico utilizado no objeto a ser
patenteado, isso corresponde, na prática, a um incentivo substancial ao acesso
clandestino de recursos biológicos. A biopirataria só será de fato eficazmente
combatida quando houver a modificação dessas normas internacionais comerciais.
É por esta reforma do sistema internacional de propriedade intelectual que tem
se batido o Brasil e os demais países ricos em biodiversidade.
Fonte: IHU On-line
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