‘A atual política indigenista
brasileira permanece nos moldes deixados pela ditadura militar’. Entrevista com
Egydio Schwade.
“Antigamente nós conseguimos evitar a obra de Belo
Monte; hoje em
dia, não se consegue mais”, constata um dos fundadores do Conselho Indigenista
Missionário – CIMI.
Foto: Portal Guaíra
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Como um “organismo oficiosamente” ligado à Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, e não “oficial”, para ter mais
“agilidade” na sua atuação, o Conselho Indigenista Missionário – Cimi
foi criado em 1972 e impulsionado por Egydio Schwade e pelo padre
jesuíta Antônio Iasi Jr., responsáveis pela criação do secretariado
executivo, que elaborou o primeiro plano de ação da organização. Num contexto
ditatorial, no qual a questão indígena era esquecida, o secretariado executivo
do Cimi surgiu com dois objetivos: “primeiro, organizar os indígenas
para que eles tivessem uma organização entre si, pudessem se conhecer, se
reunir, porque até então, desde 1500, não existiam organizações que defendessem
os direitos indígenas (…); e o segundo objetivo, mudar a pastoral indígena”,
relata Egydio Schwade, na entrevista a seguir, concedida
pessoalmente à IHU On-Line, em visita ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Egydio Schwade, que hoje mora no estado do Amazonas e convive com
os índios Waimiri Atroari, conta que o Cimi surgiu com a proposta
de pôr em prática as orientações do Concílio Vaticano II em relação à
evangelização dos povos e transformar a pastoral indígena da Igreja da época.
“O Concílio Vaticano II dizia que a Igreja deveria acabar com a
catequese, assim como os missionários teriam de procurar colher as sementes de
Deus ocultas nos povos. Então, ao invés de catequizar os índios, passamos a
evangelizá-los e a transmitir a Boa Nova, que se contrapõe à Má Nova. E qual
era a Má Nova para os índios? A perda de suas terras, de sua cultura, da
autodeterminação. Por isso, nós nos contrapúnhamos. Evangelização é o quê?
Ajudá-los a lutar pelas suas terras, pelo seu território e pela sua cultura,
porque quanto mais eles mantêm a sua cultura, mais se manifestam as sementes
ocultas de Deus”, descreve.
A atuação do Cimi junto às comunidades
indígenas acirrou os conflitos entre a Igreja e os militares. Nesse contexto, Egydio
Schwade assinala o protagonismo de padre Antonio Iasi Jr., hoje com
94 anos, autor do primeiro documento a apresentar e analisar a situação dos
indígenas que viviam no Brasil. “Iasi foi o primeiro a fazer ‘balançar a
ditadura militar’, porque provocava os generais a partir da questão indígena.
(…) Uma vez, ele foi expulso aos empurrões da Funai, em Brasília, para
nunca mais voltar. Mas dois dias depois, me diz: ‘Egydio, está na hora
de voltarmos à Funai. Precisamos visitar o general’. Então, nós fomos”,
lembra.
Entre os documentos que repercutiram à época, Schwade
destaca o Y Juca Pirama, elaborado por ele e Iasi, juntamente com
Dom Pedro Casaldáliga, Dom Tomás Balduíno, Elizeu Lopes,
então frei dominicano, Ivo Poletto e Frei Mateus, num encontro realizado
às escondidas, no interior de Goiás. “Muitos estranharam por que eu não
assinei esse documento, mas essa foi uma estratégia que adotamos a pedido de Dom
Pedro, que dizia: ‘não vamos arriscar tudo’. Como eu era secretário do Cimi,
foi melhor não assinar o documento, porque dessa forma os militares não teriam
motivo para fechar o secretariado do Cimi, que à época era a instituição
que dava impulso à questão indígena”, recorda.
Na entrevista a seguir, Schwade conta a
história do Cimi, sua repercussão durante a ditadura militar e avalia a
atuação da organização 41 anos depois.
Foto: Dazibao Rojo
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Egydio Schwade é graduado em Filosofia e Teologia pela Universidade
do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. Foi um dos fundadores do Conselho
Indigenista Missionário – Cimi e primeiro secretário executivo da entidade,
em 1972. Hoje é colaborador do Cimi, residindo em Presidente
Figueiredo-AM.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quem é padre Antônio Iasi Jr.? Como e
quando o senhor o conheceu? Pode nos contar a trajetória dele?
Egydio Schwade – Conheço padre Antônio Iasi Jr. desde os
anos 1960 e, inclusive, morei com ele em uma aldeia dos índios Rikbaktsa,
no rio Juruena, noroeste do Mato Grosso, em 1964. Ele sempre foi
uma pessoa muito engajada, um padre jesuíta que desde sempre trabalhou com os
índios, em aldeias.
Em 1972, nós criamos o Conselho Indigenista
Missionário – Cimi e, a partir de 1973, foi criado o secretariado. Na
ocasião, tornei-me o primeiro Secretário Executivo do Conselho. Logo de
início percebi que um trabalho como esse, de âmbito nacional, não poderia ser
realizado sozinho.
À época, o Cimi era um organismo
oficiosamente ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB.
Não tinha uma ligação oficial por sugestão do então secretário-geral da CNBB, Dom
Ivo Lorscheiter, que acreditava que o Cimi teria mais agilidade se
fosse um órgão oficioso. Então eu fui o responsável por organizar a primeira
equipe do secretariado executivo do Cimi. Como eu já havia criado, em
1969, a Operação Anchieta – OPAN— hoje operação Amazônia
Nativa —, apelei para eles, que logo me cederam duas pessoas, alguns padres
redentoristas e um seminarista meio rebelde. Assim, formamos a primeira equipe
do secretariado executivo do Cimi, que organizou o primeiro plano de
ação do Conselho, com dois objetivos: primeiro, organizar os indígenas para que
eles tivessem uma organização entre si, pudessem se conhecer, se reunir, porque
até então, desde 1500, não existiam organizações que defendessem os direitos
indígenas — pouco se sabe sobre esse tipo de organização, e quando há alguma
notícia ao longo da história, é sempre de uma organização que esteve
diretamente a serviço do colonizador ou dos invasores portugueses ou
holandeses; e o segundo objetivo, mudar a pastoral indígena.
“Não foi o ABC que balançou a ditadura — esse já
era o período final”
IHU On-Line – O Cimi surgiu com o objetivo de ter
uma atuação nacional?
Egydio Schwade – Sim, nacional. Quando criamos o secretariado,
decidimos que o Cimi deveria olhar a questão indígena como uma questão
nacional. À época, alguns missionários ficaram muito chateados com isso,
disseram que a Igreja já não dava conta das missões da Amazônia e
agora iria se interessar por outros indígenas, como os da região Sul. Porém,
nós sustentamos a criação e atuação do Cimi e essa decisão foi de grande
importância para o dinamismo interior da organização. Nesse sentido,
colaboraram principalmente os leigos, através da Operação Anchieta, hoje
conhecida como Amazônia Nativa.
IHU On-Line – Em que consistia essa Operação?
Egydio Schwade – Era inicialmente uma operação de missionários
leigos da Igreja Católica e Evangélica. Enquanto todas as
dioceses ou ordens religiosas se limitavam a seus territórios de atuação, a
Operação Anchieta era o primeiro organismo dentro da Igreja Católica e
Luterana que abria horizontes sem limites de prelazias e dioceses. Eles
colocavam as suas pessoas à disposição, localizavam aldeias e as mostravam aos
bispos e padres, constituindo novas paróquias e abrindo a missão.
No Sul, Egon Heck foi o primeiro coordenador
do Cimi Sul e um dos responsáveis por dinamizar o trabalho na região.
Minha esposa, Doroti, que era catarinense, foi a primeira coordenadora
do Cimi na Amazônia Ocidental. E, nesse contexto, padre Iasi
se juntou a nós, formando a primeira equipe do Cimi.
Nosso trabalho consistia em ajudar os índios a se
conhecerem entre si, a conhecerem as lideranças de diversos povos. Também
tínhamos o objetivo de transformar a pastoral indígena da Igreja da
época, de acordo com a orientação do Concílio Vaticano II, o qual dizia
que a Igreja deveria acabar com a catequese, assim como os missionários
teriam de procurar colher as sementes de Deus ocultas nos povos. Então, ao
invés de catequizar os índios, passamos a evangelizá-los e a transmitir a
Boa Nova, que se contrapõe à Má Nova. E qual era a Má Nova
para os índios? A perda de suas terras, de sua cultura, da autodeterminação.
Por isso, nós nos contrapúnhamos.
Evangelização é o quê? Ajudá-los a lutar pelas suas
terras, pelo seu território e pela sua cultura, porque quanto mais eles mantêm
a sua cultura, mais se manifestam as sementes ocultas de Deus. Essa nova
posição da Igreja criou grandes problemas com oficiais militares. E, nesse
contexto, deu-se uma das grandes missões de padre Iasi. Ele foi o
primeiro a fazer “balançar a ditadura militar”, porque provocava os generais a
partir da questão indígena. Padre Iasi não tinha nenhum patrimônio, a
única coisa que possuía era uma malinha. Se as coisas cabiam lá dentro, ele as
levava. Se não cabiam, ficavam.
“A nossa sorte foi contar com a participação dos
jornalistas, que tomaram a decisão de tornar pública a questão indígena a
qualquer custo”
IHU On-Line – Onde padre Iasi viveu durante esse
período?
Egydio Schwade – Nossa sede deveria ser em Brasília, mas durante
todo esse período, eu mesmo, como Secretario Executivo, nunca fiquei um
mês consecutivo lá. Nós estávamos sempre nos interiores, justamente para abrir
os olhos dos padres, dos bispos, das prelazias, etc. Também tínhamos a
preocupação de que os índios tivessem a oportunidade de sentir que havia alguém
do lado deles para se organizarem. Então, nós estávamos onde a situação estava
mais “quente”.
Iasi foi um dos que enfrentou as barras mais pesadas,
porque ele via as coisas. Nesse período de tensão com a ditadura, uma das
nossas estratégias — talvez até de sobrevivência — era recorrer à imprensa, aos
jornalistas, e tínhamos jornalistas de peso do nosso lado. Quando entrávamos
nas cidades, éramos cercados de jornalistas — Iasi e eu principalmente
—, porque sempre tínhamos o cuidado de não expor demais os leigos, que
geralmente eram a parte mais frágil. Houve uma época em que a ditadura militar
começou a censurar os jornais, e essas censuras atingiram a questão indígena.
Mas, assim mesmo, quando não conseguiam publicar em um jornal, os jornalistas
publicavam em outro.
IHU On-Line – Qual foi a importância e a
repercussão, à época, do documento Y Juca Pirama – o índio, aquele que deve
morrer, do qual Iasi foi autor?
Egydio Schwade – Quando assumi o secretariado do Cimi, fiz
uma viagem pelo interior do país, e na volta organizamos uma reunião com alguns
bispos para falar da situação indígena no Brasil. Padre Iasi foi quem
escreveu o primeiro texto da situação indígena no país. Como era ditadura, nos
reunimos às escondidas no interior de Goiás, no município de Abadiânia,
entre Brasília e Goiânia. Estiveram presentes Dom Pedro
Casaldáliga, Dom Tomás Balduíno, Elizeu Lopes, então frei
dominicano, Ivo Poletto, Frei Mateus, Iasi e eu. Nesse
encontro, chegamos à conclusão de que o Cimi deveria se posicionar ante
essa situação dos índios brasileiros. Escrevemos, então, o documento Y Juca
Pirama, que teve bastante repercussão. Muitos estranharam por que eu não
assinei esse documento, mas essa foi uma estratégia que adotamos a pedido de
Dom Pedro, que dizia: “não vamos arriscar tudo”.
Como eu era secretário do Cimi, foi melhor
não assinar o documento, porque dessa forma os militares não teriam motivo para
fechar o secretariado do Cimi, que à época era a instituição que dava
impulso à questão indígena. Eu também fui responsável por procurar os bispos do
Sul que quisessem assinar o documento. À época, somente um bispo quis assinar,
o bispo de Palmas – PR — nem esperávamos que fosse assinar —, e mais
dois padres de lá.
IHU On-Line – O Cimi não teve repercussão dentro da
Igreja da época?
Egydio Schwade – O episcopado ficou bastante na “moita”,
porque o governo estava sempre “em cima”. Tínhamos de fazer tudo
escondido. Eu era responsável pela entrega do material de leitura que era
enviado para leigos e padres, e lembro que certa vez telefonei de Brasília para
Goiânia para pedir um estoque de textos sobre a questão indígena. Precisava
fazer a solicitação a um leigo da prelazia de Dom Pedro, que era
o responsável pela distribuição do material. Telefonei, mas ele estava
viajando. Nesses casos, tínhamos de falar com as pessoas através de uma senha,
que era “material escolar”. Ou seja, pedi para providenciarem mais
“material escolar”. Quando cheguei a Goiânia para buscar o material, uma
leiga da diocese de Dom Tomás, que foi fazer a entrega, estava trêmula,
com um “pacotinho” na mão, e me disse que o Moura (um leigo)
acabara de ser preso. Passei muito medo naquela noite, pois a única pessoa
estranha que entrou no ônibus que peguei para voltar a Brasília se sentou justo
atrás de mim.
“Antigamente nós conseguimos evitar a obra de Belo
Monte; hoje em dia, não se consegue mais”
IHU On-Line – Como foi estar à frente do Cimi no
período militar? Quais dificuldades vocês enfrentaram nesse período?
Egydio Schwade – A nossa sorte foi contar com a ajuda da imprensa.
Ela foi responsável por todo o avanço da questão indígena. Não foi o ABC
que balançou a ditadura — esse já era o período final. A nossa sorte foi contar
com a participação dos jornalistas, que tomaram a decisão de tornar pública a
questão indígena a qualquer custo. Com isso eles nos evidenciavam quase toda
semana nos jornais, o que dificultava uma posição contra nós por parte dos
militares.
IHU On-Line – Existem casos de tortura entre os
membros do Cimi?
Egydio Schwade – Os membros do Cimi foram retirados de suas
áreas, como, por exemplo, no Acre, onde havia uma equipe de três
pessoas: uma assistente social, um professor e uma enfermeira. Eles foram
retirados de suas áreas sob tortura. Uma vez, o Iasi também foi expulso
aos empurrões da FUNAI, em Brasília, para nunca mais voltar. Mas
dois dias depois ele me diz: “Egydio, está na hora de voltarmos à FUNAI.
Precisamos visitar o general”. Então, nós fomos.
IHU On-Line – O Cimi tinha um diálogo estreito com
a FUNAI?
Egydio Schwade – Não. Nós íamos reclamar as posições. Nossa posição
era — e a posição do Cimi ainda é esta — cobrar ações em favor do índio
e o cumprimento da legislação indigenista. Nós questionávamos a política do
governo, que era contra a legislação indigenista.
IHU On-Line – O senhor tem contato com padre Iasi?
Egydio Schwade – Ele está com a saúde muito debilitada, mas mantém
o mesmo humor. Enquanto ele teve forças, esteve sempre nos ajudando na questão
indígena.
IHU On-Line – Que rumos o Cimi tomou depois da
ditadura?
Egydio Schwade – Em primeiro lugar, acredito que o Cimi
continua na posição correta de questionar a política indigenista brasileira, a
qual permanece nos mesmos moldes em que foi deixada na ditadura militar. Houve
uma pequena tentativa de mudança, que começou com a criação de uma equipe
formada pelos índios Waimiri Atroari, pelo Cimi, pela FUNAI,
por alguns advogados e professores de universidades, que reencaminharam toda
política indigenista. Mas, menos de dois anos depois, minha esposa e eu assumimos
o trabalho com a comunidade Waimiri, fizemos a primeira alfabetização na
língua desse povo, e eles começaram, espontaneamente, a revelar que mais de
dois mil índios foram mortos durante a ditadura militar. Como a Funai
estava envolvida com as mortes, a nova política indigenista passou para uma
empresa que também estava interessada em ocultar os fatos, e a mudança na
política indigenista parou por aí.
Em nível nacional, a FUNAI se reencaminhou
com a posição do senador Romero Jucá, que até hoje é inimigo dos índios.
Eles, então, retomaram o roteiro da ditadura militar e passaram a investir nos
grandes projetos de mineração, de hidrelétricas, os quais estão muito mais
agressivos do que durante a própria ditadura. Antigamente nós conseguimos
evitar a obra de Belo Monte; hoje em dia, não se consegue mais.
Fonte: IHU On-line
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