A biotecnologia e as preocupações
jurídicas. Entrevista com Taysa Schiocchet.
“O Direito trata os conhecimentos
tradicionais como bens socioambientais, pois estão relacionados à prática
cultural do meio social dessas coletividades e à manutenção e equilíbrio do
meio ambiente em que vivem, na medida em que participam, através deste
conhecimento, do manejo ecológico do ecossistema”, diz a pesquisadora.
O avanço biotecnológico tem suscitado algumas
preocupações jurídicas no Brasil. Entre elas, como proteger os
interesses das sociedades tradicionais e como repartir os benefícios gerados a
partir da utilização dos conhecimentos tradicionais para o desenvolvimento de
biotecnologias.
Segundo Taysa Schiocchet, a
constante exploração econômica dos conhecimentos tradicionais e dos recursos
naturais “visa à obtenção de patentes biotecnológicas pelas empresas, mas que,
por não reconhecerem os conhecimentos tradicionais como inovação, não repartem
com as comunidades os lucros obtidos, impondo uma racionalidade individualista
e econômica aos grupos tradicionais”. Na entrevista a seguir, concedida à IHU
On-Line por e-mail, a pesquisadora informa que “tem sido discutido no
Direito em que medida o princípio constitucional da função social da propriedade
(art. 5º, XXIII e art. 170, III da CF/88), que vincula a
propriedade ao alcance de seu fim social e norteia a atividade econômica,
poderia impedir e/ou compatibilizar essa prática”.
Com o objetivo de propor uma discussão sobre os
impactos dos avanços tecnológicos na sociedade contemporânea e os impactos da
biotecnologia nas chamadas sociedades tradicionais, o PPG em Direito da
Unisinos promove o I Congresso de Direito, Biotecnologia e Sociedades
Tradicionais, que acontece entre os dias 25 e 26-03-2014, na Unisinos.
“Com o Congresso, pretendemos criar um espaço transdisciplinar de discussão
para que o Direito possa lidar com essa realidade de maneira mais adequada”,
afirma a pesquisadora.
De acordo com Taysa, “o acesso
aos recursos biológicos ocorre, via de regra, acompanhado do conhecimento
tradicional associado à biodiversidade das comunidades tradicionais, para o
desenvolvimento de produtos farmacêuticos e cosméticos”. Nesse contexto,
assinala, “o valor econômico acaba por determinar as relações de poder e seus
beneficiários. Com isso, o mercado insiste em explorar a ciência, sob o
argumento do desenvolvimento científico e tecnológico, bem como os detentores
de saberes que possam ser explorados nessa mesma lógica desenvolvimentista, sem
maiores preocupações com a proteção dos interesses dos sujeitos afetados ou
mesmo ‘desapropriados’ de seus saberes”.
Taysa Schiocchet é graduada em
Ciências Jurídicas e Sociais e mestre em Direito pela Universidade do
Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, e doutora em Direito das Relações
Sociais pela Universidade Federal do Paraná – UFPR, com tese
intitulada Acesso e exploração de informação genética humana: da doação
à repartição dos benefícios. Atualmente é professora do Programa
de Pós-Graduação em Direito da Unisinos.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em que consiste o I
Congresso de Direito, Biotecnologia e Sociedades Tradicionais? Quais são os
principais temas a serem abordados?
Taysa Schiocchet - O Congresso é
uma iniciativa do Grupo de Pesquisa |BioTecJus| e do Programa
de Pós-Graduação em Direito – PPGD da Unisinos, que propõe a discussão
sobre os impactos dos avanços tecnológicos na sociedade
contemporânea e, mais concretamente, os impactos da biotecnologia nas chamadas
sociedades tradicionais — povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, etc.
Com o Congresso, pretendemos
criar um espaço transdisciplinar de discussão para que o Direito possa lidar
com essa realidade de maneira mais adequada. Para tanto, convidamos
professores, pesquisadores e lideranças indígenas, os quais irão apresentar as
diversas facetas dessa temática, seja do ponto de vista do Direito, da inovação
tecnológica, da filosofia, da ética em pesquisa ou mesmo dos integrantes das
sociedades tradicionais.
Os principais temas a serem tratados no evento
são: biodiversidade e biopirataria; pesquisas em povos indígenas, consentimento
e repartição dos benefícios; novas tecnologias e os saberes indígenas;
produção, proteção e difusão dos conhecimentos tradicionais associados;
experiências em inovação tecnológica, inclusão social e sustentabilidade;
desastres biotecnológicos; e função social da propriedade intelectual e saber
criativo.
IHU On-Line – Quais são as principais
pesquisas relacionadas aos avanços biotecnológicos e como o Direito tem tratado
de suas implicações jurídicas, éticas e sociais?
Taysa Schiocchet - As principais
pesquisas dizem respeito à obtenção de recursos biológicos por meio de
estratégias de bioprospecção para fins de exploração econômica, bem como de
dados genéticos de comunidades indígenas, a exemplo dos Karitiana,
em Rondônia, que tiveram o sangue coletado sem a sua
autorização, visando à realização de testes genéticos e pesquisas posteriores.
O acesso aos recursos biológicos ocorre, via de
regra, acompanhado do conhecimento tradicional associado à biodiversidade das
comunidades tradicionais, para o desenvolvimento de produtos farmacêuticos e
cosméticos. Para tanto, o Direito exige que essas comunidades forneçam o
consentimento informado, bem como participem da repartição de benefícios
oriundos dos resultados de tais pesquisas e desenvolvimento de produtos
biotecnológicos.
Algumas formas de controle, ainda precárias, são
a submissão de projetos de pesquisa para os Comitês de Ética em Pesquisa ou as
propostas de acesso aos recursos genéticos ao Conselho de Gestão do Patrimônio
Genético.
“A relação entre Ciência, mercado biotecnológico e
povos indígenas não é rígida nem estática, e por isso é difícil de descrever”
IHU On-Line – Quais são as
principais preocupações jurídicas em torno dos avanços biotecnológicos?
Taysa Schiocchet - As
preocupações giram em torno de duas situações. Por um lado, proteger os
interesses das sociedades tradicionais, a partir da obtenção do consentimento prévio
informado, bem como resguardar o meio ambiente em que vivem, a prática cultural
e sua organização social. Por outro, realizar uma repartição de benefícios
justa e que se coadune com as peculiaridades desses grupos.
Ambos os pressupostos estão previstos na Convenção
de Diversidade Biológica e na Medida Provisória 2186-16/2001. Importa,
assim, garantir a eticidade da pesquisa, de maneira a respeitar os
participantes em sua dignidade e autonomia, sobretudo diante da vulnerabilidade
deles. Além disso, avaliar os riscos e benefícios, comprometendo-se com o
máximo de benefícios e o mínimo de danos ou riscos. Tais diretrizes constam na Resolução
466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, que dita as
normativas de atuação da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa e dos
Comitês de Ética em Pesquisa.
IHU On-Line – Como se dá a exploração da
biodiversidade brasileira e quais são as normativas legais para impedir essa
prática? Como o Direito entende e trata, nesse sentido, os conhecimentos
tradicionais?
Taysa Schiocchet - Inicialmente
a exploração é realizada mediante estratégias de bioprospecção, com a obtenção
dos recursos biológicos com o acesso direto à biodiversidade ou por meio do
conhecimento tradicional associado das sociedades tradicionais, o que reduz o
custo e o tempo de pesquisas, buscando o isolamento das substâncias e a
identificação de princípios ativos. Em momento posterior, identificado o
potencial econômico, a exploração se dá com a obtenção dos recursos da
biodiversidade onde se encontram os princípios ativos/materiais genéticos
identificados nas pesquisas.
A exploração econômica desses recursos visa
igualmente à obtenção de patentes biotecnológicas pelas empresas, mas que, por
não reconhecerem os conhecimentos tradicionais como inovação, não repartem com
as comunidades os lucros obtidos, impondo uma racionalidade individualista e
econômica aos grupos tradicionais. Tem sido discutido no Direito em que medida
o princípio constitucional da função social da propriedade (art. 5º,
XXIII e art. 70, III da CF/88), que vincula a propriedade ao alcance
de seu fim social e norteia a atividade econômica, poderia impedir e/ou
compatibilizar essa prática.
O direito trata os conhecimentos tradicionais
como bens socioambientais, pois estão relacionados à prática cultural do meio
social dessas coletividades e à manutenção e equilíbrio do meio ambiente em que
vivem, na medida em que participam, através deste conhecimento, do manejo
ecológico do ecossistema. Assim são as disposições da Convenção de
Diversidade Biológica e da Declaração do Rio de Janeiro (princípio 22),
e da Constituição Federal de 1988 (arts. 1º, III, 215, 216, 225 e 231).
No âmbito do Direito Internacional dos
Direitos Humanos, notadamente na Convenção para a Proteção e Promoção
da diversidade das expressões culturais da UNESCO (disposições
preambulares), são considerados Direitos Humanos Culturais,
reconhecendo a esses conhecimentos tradicionais sua importância e contribuição
para o desenvolvimento sustentável.
“O Direito exige que essas comunidades forneçam o
consentimento informado, bem como participem da repartição de benefícios
oriundos dos resultados de tais pesquisas”
IHU On-Line – Como tem se dado a relação
entre a Ciência, o mercado biotecnológico e os povos indígenas? Quem se
beneficia com essa relação?
Taysa Schiocchet - A relação
entre ciência, mercado biotecnológico e povos indígenas não é rígida nem
estática, e por isso é difícil de descrever. Em linhas gerais, é possível
afirmar que ela tem se caracterizado pela visível desigualdade entre os atores
envolvidos, pela divergência de valores que conduzem suas ações e práticas
sociais e pela incorporação dos interesses e vantagens do mercado capitalista —
muitas vezes como forma de “sobrevivência” — pela própria ciência e pelos povos
indígenas.
Nesse contexto, o valor econômico acaba por
determinar as relações de poder e seus beneficiários. Com isso, o mercado
insiste em explorar a ciência, sob o argumento do desenvolvimento científico e
tecnológico, bem como os detentores de saberes que possam ser explorados nessa
mesma lógica desenvolvimentista, sem maiores preocupações com a proteção dos
interesses dos sujeitos afetados ou mesmo “desapropriados” de seus saberes. Uma
aposta promissora indica a universidade como uma figura crucial para equilibrar
essa relação. Daí a necessidade de se apropriar adequadamente dos saberes
tecnocientíficos, para dimensionar sua extensão e impactos, bem como dos
valores que guiam a proteção das sociedades tradicionais e da vida planetária.