sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

A Sarneylândia e as oligarquias brasileiras.


A mais bem sucedida oligarquia do país

Para Lúcio Flávio, horror em Pedrinhas mostra que Maranhão mergulhou em degração moral.

Os ônibus se tornaram o principal alvo de protesto, vandalismo e criminalidade nas grandes cidades brasileiras. Em cada uma há centenas ou milhares deles, transportando milhares ou milhões de pessoas todos os dias. Os ônibus são invadidos quase que diariamente por algum motivo – e sempre com grande repercussão, por sua dimensão social. Mas em nenhum episódio a ação foi tão cruel quanto no início deste ano em São Luís do Maranhão.

Como em outras ocasiões, quatro ônibus foram incendiados, cota até discreta para o padrão nacional, ferindo gravemente cinco pessoas e causando uma morte. Os homens que entraram armados num dos ônibus não se limitaram ao veículo: jogaram a gasolina sobre pessoas e atearam fogo, com o propósito deliberado de matar.

A menina Ana Clara Sousa, de 6 anos, morreu com 95% do seu corpo queimado. Sua mãe, Juliane, de 22 anos, que sofre de depressão, pediu aos invasores que poupassem a criança. Não conseguiu e também foi atacada. Ficou com 40% do corpo queimado. O entregador de frango Márcio Nunes, que tentou salvar a menina, teve 72% do corpo queimado, principalmente no rosto. Como Juliane, foi hospitalizado, em estado grave.

O ataque ao ônibus aconteceu no bairro Vila Sarney Filho. Zezinho, como é mais conhecido o personagem, é filho do ex-presidente da república, ex-presidente do senado e ainda – e sempre – senador José Sarney. Zezinho se elegeu deputado federal sete vezes (mesmo número do pai no Senado). É irmão da governadora Roseana Sarney. Os nomes Sarney se espalham por vias públicas, prédios, bairros. Só em escolas estaduais e municipais, são 161 homenagens ao clã.

Há mais de meio século a família domina o Maranhão, o Estado mais atrasado do Brasil. Já era atrasado, mas ficou pior relativamente sob a mais bem sucedida das oligarquias regionais do país. Dos 15 municípios brasileiros com as menores rendas, 10 são maranhenses.

Em 1965, quando era da “ala jovem” da UDN, com pretensões modernizadoras, Sarney assumiu o governo pela primeira vez, pondo fim ao predomínio do grupo do “coronel” Victorino Freire. Desde então, a família venceu 10 eleições para o governo, ao longo de 41 anos. Mesmo com o deslocamento para o Amapá, onde conseguiu duas eleições de senador, Sarney continuou a dar as cartas. Sua filha foi derrotada apenas em duas ocasiões: quando José Reinaldo Tavares traiu o grupo e rompeu com os Sarney, em 2004, e quando Jackson Lago venceu Roseana, que concorria ao terceiro mandato de governadora, dois anos depois. Lago ficou no cargo por menos de dois anos: a justiça cassou o seu mandato por compra de votos.

A coincidência do ataque ao ônibus acontecer num bairro com o nome dos Sarney é exemplar da degradação moral, mais do que econômica, do Maranhão. A lei proíbe que pessoas vivas tenham seus nomes em prédios públicos. A lei é desrespeitada em todo Brasil, mas com requintes de abuso no Maranhão. A violência que, nos últimos meses, nascida numa suposta penitenciária de segurança máxima, a de Pedrinhas, atraiu as atenções nacionais e internacionais para o Estado, escancarou o nepotismo desbragado.

O relaxamento das regras elementares de conduta na vida coletiva e de normas legais, como o veto ao culto de personalidades vivas, foi adotado à larga nesse estabelecimento prisional. Deu causa a 62 homicídios cometidos em seu interior no ano passado, incluindo três decapitações (filmadas pelos próprios carrascos) e esquartejamento nas execuções bárbaras. Essa espantosa sucessão de crimes talvez tivesse continuado sua rotina local se não provocasse intervenções externas, inclusive da Organização dos Estados Americanos.

Algumas medidas corretivas adotadas para controlar os grupos rivais que travavam uma guerra sangrenta no presídio foi o suficiente para que essas quadrilhas se sentissem autorizadas a retaliar fora dos muros prisionais. Daí os ataques aos ônibus e a imolação dos seus passageiros, que em ocasiões semelhantes, em outros lugares, foram poupados da agressão.

É evidente a insensibilidade, a incompetência e até mesmo a conivência do governo de Roseana Sarney com os miasmas que afligem o seu Estado. Dela e do pai. Ambos levitam em outro planeta, não no Maranhão. A imprensa flagrou concorrência pública de um milhão de reais do governo para a compra de comidas e bebidas finas para o Palácio dos Leões e suas extensões ao longo deste ano. Incluindo lagosta e camarão, mas também um suspeito “refrigerante rosado”, contendo “água gaseificada, açúcar e extrato de guaraná”, que outro não é senão o refrigerante Jesus, único no Brasil, por sua singularidade, descrita no edital, e gosto extravagante. Ação entre amigos, até na cozinha palaciana?

Não há uma relação de causa e efeito entre o domínio autocrático da família Sarney sobre a política maranhense e todos os acontecimentos ruins e as marcas negativas que o Estado exibe. Não há dúvida, porém, que a manutenção dessa estrutura nociva, ao longo de tantos anos, deve ser creditada ao clã liderado pelo eterno senador.

Com a sua maneira impermeável de se livrar de responsabilidades, o “padrinho” deve se sentir injustiçado diante da acusação. Afinal, São Luís cresceu e melhorou, como insistiu a filha em destacar. O Maranhão recebeu novos investimentos, sua economia voltou a se diversificar. Mas esse crescimento não teve a devida tradução social, não se transformou em riqueza e progresso para os maranhenses – para mais maranhenses do que uma elite indiferente ao paradoxo da pobreza em expansão paralelamente a grandes investimentos, em geral favorecidos pelo Estado.

Da mesma maneira como a lei é supinamente ignorada, quando interessa aos donos do poder, os benefícios são desviados para poucos bolsos, num circuito clandestino que só emerge quando ocorre um acidente, como quando uma operação da Polícia Federal flagrou uma montanha de dinheiro vivo (1,2 milhão de reais) para o fundo de campanha de Roseana para a presidência da república. O contraste entre a grandeza potencial e seu efeito concreto é, ele próprio, um instrumento da sobrevivência desse esquema de poder. Tem direito a participar do butim quem se incorpora ao grupo dominante.

Por isso, os Sarney são responsáveis tanto por aquilo que deram causa direta como pelo que resulta dessa concentração patrimonial e política, que se legitima com os suspiros literários do vate senatorial. Os trágicos acontecimentos dos últimos dias podem acabar com essa sucessão de linhagem, se a onda de indignação superar as conveniências políticas de São Luís e de Brasília. Conforme se sabe, Roseana é do PMDB, como o pai, e o PMDB é da base de sustentação do governo do PT. O mais importante partido dessa coligação.

Uma péssima moral da história foi permitir que Josef Stálin, um dos líderes mais selvagens que já apareceu no mundo moderno, morresse de causa natural em seu leito, em Moscou. Nenhum Sarney tem a menor semelhança com o czar soviético, mas também não faz boa moral que seu reinado sobreviva às negras purgações impostas ao Maranhão neste meio século e nestes últimos dias. Se essa oligarquia, a mais bem sucedida de todas, chegar ao fim, quantas não a seguirão, para o bem do Brasil?


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