O absurdo da lei que quer abrir UCs para a mineração
Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interamericano de Desenvolvimento e fundador da ProNaturaleza.
Imagem feita por satélite das marcas
deixadas pela mina de ferro de Carajás, feita em 2009. Foto: Wikicommons
A preparação, discussão e aprovação
da Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (Lei 9.985 de
18 de julho de 2000) foi um extraordinário e difícil processo que demorou mais
de uma década na sociedade, na academia, no CONAMA e oito anos apenas no
Congresso Nacional. Como também ocorreu recentemente com a revisão do Código
Florestal, essa lei foi fruto de um elaborado consenso entre os mais diversos e
às vezes extremos interesses, que no caso incluiu o dos mineradores e o do
Ministério de Minas e Energia. Então, como é possível sequer entrar em pauta um
projeto de lei que destrói todo o trabalho feito, e mostra absoluto
desconhecimento dos antecedentes e das suas implicações?
Prestes a ser votado na Comissão de
Minas e Energia da Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 3.682/2012 não só
contém propostas que destroem a essência da Lei 9.985, mas, além disso,
comprometem mandados constitucionais como os que se referem aos direitos dos
povos indígenas, o direito a um ambiente ecologicamente equilibrado e o direito
à preservação do patrimônio natural. Dentre outras medidas, o projeto
eliminaria a intangibilidade das áreas protegidas de proteção integral
permitindo que até 10% delas sejam utilizados pela mineração. Abriria as áreas
protegidas de uso sustentável e as terras indígenas para esta finalidade e para
usos energéticos, transferiria o estabelecimento de novas Unidades de
Conservação para o Congresso, imporia limitações insuperáveis para o
estabelecimento de novas áreas protegidas, permitiria desafetar áreas
protegidas por simples decreto presidencial, etc., etc.
Não se requer muita imaginação para
vislumbrar o que tais medidas implicariam. De fato, nenhuma área de todas e
cada uma das Unidades de Conservação existentes ficaria livre da cobiça dos
mineradores. A realidade implica que estes recursos existam em maior ou menor
quantidade em todas elas. Como ficariam os planos de manejo, submetidos às
descobertas geológicas ou à variação do preço dos minerais? O que ocorreria se
as empresas demandassem explorar minérios no setor biologicamente mais
importante? Ou, no setor onde existem os maiores atrativos naturais e
turísticos? E por onde passariam as estradas ou as ferrovias para extrair o
mineral? E que fazer com a inevitável contaminação ambiental gerada pela
exploração? Como consolação o projeto diz que os mineradores estariam obrigados
a compensar a área mineirada com uma área duas vezes maior. Mas será que o
generoso legislador sequer pensou como isso seria viável? Acaso esqueceu que as
áreas protegidas se estabelecem onde é ecologicamente necessário que estejam e
não em qualquer lugar? Ou não sabe que, em geral, ao redor delas já não existe
nenhum espaço natural disponível?
Outras medidas incluídas no projeto
são igualmente fatais para o Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Já o
governo federal atual decidiu, usando argúcias legais, amputações a Unidades de
Conservação importantes com o intuito de construir hidroelétricas e autorizar a
passagem de linhas de transmissão e estradas. Alguns estados, como o de
Rondônia, tem praticamente eliminado seus sistemas estaduais. Não é difícil
prever o que ocorreria se a lei proposta fosse aprovada, dispensando lei
específica para alterar, aumentar ou reduzir o tamanho ou limites das Unidades
de Conservação. São várias dúzias delas que sucumbiriam apenas no primeiro ano
da sua aplicação -- dentre elas o Parque Nacional Iguaçu-- e, quiçá, todas
passariam por isso antes da passagem da primeira década da aprovação da nova
lei.
Criação de novas UCs será impossível
Na realidade, o
Projeto de Lei 3.682/2012 é, quiçá, sem se ter consciência disso, uma
proposta para acabar com a conservação da natureza no Brasil.
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Estabelecer novas Unidades de
Conservação, o que já é muito difícil, seria literalmente impossível.
Dever-se-ia demonstrar que a área não tem interesse para a mineração
("favorabilidade geológica") ou para a geração de energia hídrica, a
serem determinados pelo órgão competente, ou seja, o setor mineiro e
energético. De fato, em qualquer lugar do Brasil há recursos minerais e há
água, com a relativa exceção dos desertos onde não obstante pode haver água
subterrânea. Tampouco seria possível sequer pensar em estabelecer áreas de
proteção ambiental e outras de uso direto ou uso sustentável, pois elas estão
antropizadas. As novas áreas protegidas só poderiam ser criadas por lei do
Congresso embora contraditoriamente o mesmo projeto de lei proponha que sejam
alteradas por decreto. Para dificultar ainda mais a coisa, não se poderia
estabelecer novas áreas sem previsão em lei orçamentária dos recursos para a
implantação, incluindo recursos para desapropriação da área e pagamento de
indenização aos proprietários particulares. Isto é um sonho nunca realizado no
passado, mas, que no contexto que se discute é apenas um estorvo adicional.
Na realidade, o Projeto de Lei
3.682/2012 é, quiçá, sem se ter consciência disso, uma proposta para acabar com
a conservação da natureza no Brasil. A mineração e a geração de energia são
atividades indispensáveis para o desenvolvimento e promovê-las é, sem dúvida,
assunto de interesse nacional. Porém, os legisladores têm o dever de evitar
destruir com o cotovelo o que seus próprios colegas fizeram com a mão e usando
o cérebro. As áreas protegidas assim são chamadas porque protegem a natureza do
uso e abuso humano.
Preservar o patrimônio natural é tão
necessário para o futuro da nação como a energia ou os minérios. Há lugar para
cada atividade como também existe para a agropecuária ou a exploração florestal
e pesqueira. Se houver um caso muito especial que requeira abrir uma exceção à
regra que as unidades de conservação são essenciais para manter o patrimônio
biológico nacional, esse caso deve ser tratado como tal. Para atender um ou
outro caso específico não se precisa abrir a comporta que poderia deixar o país
sem nenhuma segurança de manter seu patrimônio genético natural, sem mencionar
outros serviços ambientais que as áreas protegidas oferecem.
É provável que o senso comum prime e
que o Projeto de Lei 3.682/2012 não prospere ou que seja drasticamente
alterado. Não parece lógico que o projeto, que mexe com a essência da
conservação da diversidade biológica de um país, seja visto numa comissão de
minas e energia, onde é óbvio que o tema é desconhecido. Mas, ainda que esse
projeto despareça do cenário, ele deixa um rastro amargo e, obviamente, afetará
negativamente a boa reputação internacional do Brasil em matéria ambiental, bem
ganha e com tanto esforço.
Fonte: OECO
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