A responsabilidade com a
qualidade da água termina na porta da rua. Entrevista com José Bento da Rocha
“A forma de tratamento da água disponibilizada no
Brasil se constitui, grosso modo, de processos mecânicos e químicos que visam
reduzir a concentração de poluentes”, lamenta o farmacêutico.
Foto: http://bit.ly/1f9TQDG
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“O déficit para o abastecimento de água potável é
de aproximadamente 10%, se considerada apenas a presença/ausência da
disponibilidade do serviço para o domicílio. No entanto, quando se leva em
conta a adequabilidade/continuidade deste serviço, o déficit sobe para
aproximadamente 40%, o que é extremamente alto.”
A constatação é de José Bento da Rocha,
autor da dissertação de mestrado intitulada A regulação e a universalização
dos serviços de abastecimento de água potável no Brasil, realizada pela
Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz.
Segundo ele, em entrevista concedida à IHU
On-Line por e-mail, os dados disponíveis referentes à qualidade da água
“revelam que a situação do abastecimento de água potável no Brasil ainda é
muito preocupante”.
Rocha esclarece que 33,9% dos domicílios brasileiros
ainda estão enquadrados no conceito de “déficit intermediário sob a alcunha de
atendimento precário”.
A discussão em relação à qualidade da água,
assinala, “gira em torno dos 33,9% de domicílios enquadrados nesta categoria —
se, na realidade, não deveriam se somar aos sem atendimento, pois são atendidos
de maneira inadequada. Por outro lado, questiono: somente deveriam ser
atendidos os domicílios em que é possível atendimento de qualidade (adequado) e
o restante deveria ser deixado de lado? Ou é melhor atender precariamente do
que não atender?”
José Bento da Rocha explica ainda que o tratamento
da água no Brasil enfrenta problemas como tratamentos incompletos e até mesmo
ausência de tratamento prévio. “Em uma realidade ainda bem distante da nossa, o
ideal para garantir a qualidade da água tratada seria a adoção do padrão
europeu (talvez alguns diriam ‘Padrão FIFA’) em que não é permitida a
reservação de água (isto é, não se pode ter uma caixa d’água em casa) e que a
obrigação do ‘fornecedor’ da água (seja privado ou público) é garantir sua
qualidade até a torneira”, conclui.
José Bento da Rocha é farmacêutico graduado pela
Universidade Estadual de Goiás – UEG, especialista em Controle de Tráfego Aéreo
pela Escola de Especialistas da Aeronáutica – EEAR, pós-graduado em Direito
Administrativo com ênfase em Gestão Pública, Regulador de Serviços Públicos e
mestre em Saúde Pública com ênfase em Gestão e Regulação de Serviços Públicos
de Saneamento Básico – ENSP/FIOCRUZ. Atualmente é coordenador de Monitoramento
de Projetos da Agência Reguladora de Águas, Energia e Saneamento do Distrito
Federal – ADASA.
Foto: http://bit.ly/18EClaA
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Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que os dados disponíveis sobre a
cobertura de abastecimento de água potável no país revelam sobre o
abastecimento e a qualidade da água brasileira?
José Bento da Rocha - Apesar de apresentarem fortes
discrepâncias e, porque não dizer, deficiências, os dados disponíveis revelam
que a situação do abastecimento de água potável no Brasil ainda é muito
preocupante. Seja em relação ao aspecto quantitativo ou ao qualitativo. Quando
se coloca em foco o déficit sob o prisma puramente quantitativo, chega-se a
aproximadamente 10% da população brasileira excluída do acesso a esse bem
essencial. Quando se adiciona o fator qualidade/continuidade da água
disponibilizada, este déficit sobe assustadoramente para algo próximo de 40%.
De todo modo, ambos são extremamente altos. Ainda no prisma qualitativo, um
fator bastante controverso é a classificação adotada no Plano Nacional de
Saneamento Básico – PNSB (que na verdade ficou conhecido como PLANSAB
e foi aprovado definitivamente em 06/12/2013), que reafirma um conceito de
“déficit intermediário” sob a alcunha de atendimento precário.
A discussão gira em torno dos 33,9% de domicílios
enquadrados nesta categoria — se, na realidade, não deveriam se somar aos sem
atendimento, pois são atendidos de maneira inadequada. Por outro lado,
questiono: somente deveriam ser atendidos os domicílios em que é possível
atendimento de qualidade (adequado) e o restante deveria ser deixado de lado?
Ou é melhor atender precariamente do que não atender? Ao que, utopicamente,
deveriam existir apenas serviços com atendimento de qualidade, mas dada a dura
realidade atual e todo o histórico que a precede, não se concebe deixar de
atender parte da população, ainda que fosse para propiciar atendimento com água
mineral ao restante.
IHU On-Line – Como o tratamento da água vem sendo
feito no Brasil e qual o método correto de garantir um tratamento adequado
da água? Quais são as preocupações do país em garantir a água potável?
José Bento da Rocha - A forma de tratamento da água
disponibilizada no Brasil, que deveria variar em função do enquadramento da
fonte, diga-se qualidade original da água e/ou da solução adotada (se rede
geral, solução alternativa ou individual), se constitui, grosso modo, de
processos mecânicos e químicos que visam reduzir a concentração de poluentes
(coagulação, floculação, decantação, filtração, desinfecção, etc.).
Entretanto, na prática, há problemas que vão desde
tratamentos incompletos até sua ausência, ou seja, água disponibilizada à
população sem qualquer tratamento prévio. Em uma realidade ainda bem distante
da nossa, o ideal para garantir a qualidade da água tratada seria a adoção do
padrão europeu (talvez alguns diriam “Padrão FIFA”) em que não é
permitida a reservação de água (isto é, não se pode ter uma caixa d’água em
casa) e que a obrigação do “fornecedor” da água (seja privado ou público) é
garantir sua qualidade até a torneira.
No Brasil esta responsabilidade termina na porta da
rua (Lei 11.445/2007 – Art. 3º – Para os efeitos desta Lei, considera-se
abastecimento de água potável: constituído pelas atividades, infraestruturas e
instalações necessárias ao abastecimento público de água potável, desde a
captação até as ligações prediais e respectivos instrumentos de medição).
Existem instrumentos coerentes para garantir a
qualidade da água fornecida, a exemplo da Portaria 2914/2011 do
Ministério da Saúde, mas sua fiscalização é deficiente e, ainda que não o
fosse, haveria a possibilidade de contaminação na parte interna das casas, pois
se pode afirmar, com certeza, que o percentual da população que lava
regularmente suas caixas d’água, como recomendado, é muito baixo.
IHU On-Line – É possível estimar o déficit de água
potável no país? Quais as razões deste déficit em relação à qualidade da água?
José Bento da Rocha - No estudo realizado, chegou-se à
conclusão de que o déficit para o abastecimento de água potável é de
aproximadamente 10%, se considerada apenas a presença/ausência da
disponibilidade do serviço para o domicílio (urbano ou rural). No entanto,
quando se leva em conta a adequabilidade/continuidade deste serviço, o déficit
sobe para aproximadamente 40%, o que é extremamente alto.
Em relação ao déficit de cobertura para o
abastecimento de água potável, conclui-se que há uma série de complicadores
para a sua extinção. Além das razões já apresentadas acima, podem-se citar
problemas que vão desde a vontade política dos governantes, passando pelas
dificuldades financeiras (alto custo), áreas de ocupação irregular (ausência de
infraestrutura e alegada baixa capacidade de pagamento dos moradores) até
deficiências relacionadas aos dados sobre esta cobertura (falta de padrão das
pesquisas, foco na presença/ausência do serviço e não em sua
adequabilidade/continuidade — deficiências estas que impedem o conhecimento
realístico da situação e possibilitam, em caso de má-fé, o uso destes dados em
manobras para manipulação de resultados nas estatísticas oficiais).
IHU On-Line – Por quais razões o acesso aos
serviços de abastecimento de água potável no país ainda é restrito em algumas
regiões? Em quais estados brasileiros o acesso à água é mais restrito?
José Bento da Rocha - Duas situações devem ser
destacadas no que tange às questões regionais relativas ao déficit. A primeira
é que, tanto na Região Norte, com a aparente abundância de água, como na Região
Nordeste, com suas secas castigantes, há problemas sérios de abastecimento. Os
estados destas duas regiões figuram, portanto, como os mais atingidos pelo
déficit, sendo que no Norte o principal inimigo é o altíssimo índice de perdas,
e no Nordeste, a escassez, além das deficiências estruturais nas duas regiões.
A segunda situação é a questão relacionada às ocupações irregulares (áreas de
favelas, invasões, etc.), que crescem exponencialmente e nas quais não há
infraestrutura básica, muito menos qualquer planejamento prévio de expansão.
IHU On-Line – Como funciona o processo de gestão da
água no Brasil e como avalia a maneira como vem sendo conduzido?
José Bento da Rocha - O processo de gestão das águas a
partir da integração entre a Agência Nacional de Águas – ANA e os
estados é, até certo ponto, satisfatório. O mais preocupante é que o Brasil
ainda não valoriza, como deveria, o imenso patrimônio que possui em relação às
suas águas. A errônea sensação de que a água é um bem ilimitado no país e a
falta de instrumentos eficientes de monitoramento (georeferenciamento,
telemetria, rastreamento de contaminações e contaminantes, etc.) são pontos
bastante negativos desta gestão.
IHU On-Line – Quais têm sido os principais
investimentos e políticas públicas para garantir a qualidade da água no Brasil?
José Bento da Rocha - A definição dos parâmetros de
potabilidade /qualidade da água a serem adotados, conforme a Portaria
2914/2011 – MS, e suas implicações em relação à estrutura a ser utilizada para
este fim, como Secretaria de Vigilância em Saúde – SVS/MS, Programa
Nacional de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano – VIGIAGUA,
Fundação Nacional de Saúde – FUNASA, Agência Nacional de Vigilância
Sanitária – ANVISA, entre outros, são marcos importantes. Entretanto, não
garantem, por si mesmos, esta qualidade. Fatores como o excesso de agrotóxicos
utilizados nas plantações (que de alguma forma chegam até os mananciais) não
são adequadamente analisados na maioria dos casos.
IHU On-Line – Como a universalização da água é
contemplada na Lei 11.445/2007, que estabelece as diretrizes nacionais
para o saneamento básico?
José Bento da Rocha - A Lei 11.445/2007 traz um
novo paradigma, quando aponta para a universalização dos serviços como um de seus
princípios. A despeito de que no Brasil a previsão em lei não garante sua
execução, o abastecimento de água é o serviço mais adiantado nesta empreitada.
E também neste contexto, a regulação ganha peso como possível instrumento de
incentivo e/ou coerção ao cumprimento das regras definidas em várias frentes
legais e regulamentares.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
José Bento da Rocha - Os estudos realizados neste
trabalho (A regulação e a universalização dos serviços de abastecimento de
água potável no Brasil) evidenciaram a importância do abastecimento de água
potável para o bem estar da população. Ressalta-se que as dificuldades de
acesso são maiores do que a presença ou ausência de rede, poço ou qualquer
outra forma de disponibilização da água. Além da presença de um sistema ou
estrutura de abastecimento, a água deve estar disponível, com qualidade e ter
viabilidade econômica para o usuário. Por todo seu potencial de impacto em
aspectos como saúde, trabalho e dignidade na vida das pessoas, o acesso à água
é de fundamental importância.
O déficit de cobertura ainda existente para
abastecimento de água potável é preocupante tanto no sentido quantitativo
quanto e, principalmente, no qualitativo. No olhar sobre o aspecto
quantitativo, fica evidente que uma parcela considerável da população
brasileira, próximo de 10%, se considerados os meios urbano, rural e as
comunidades não regularizadas, está excluída do acesso ao qual tem direito. Já
com o foco voltado para uma visão qualitativa, é preocupante perceber que
dentre os brasileiros que recebem o serviço, mais de um terço não o recebe de
forma adequada, ou seja, nos padrões de qualidade que deveria receber.
Saneamento
Outro aspecto observado neste trabalho é que a
qualidade dos dados referentes aos serviços de saneamento em geral, inclusive
de abastecimento de água potável, apresentam um baixo grau de confiabilidade.
Este problema envolve desde a forma como são propostas e realizadas as
pesquisas do setor, até a falta de conhecimento técnico dos participantes que
prestam, voluntariamente, as informações quando requeridas.
A regulação da prestação dos serviços de
abastecimento de água potável pode e deve assumir papel primordial frente à
extrema complexidade técnica, política e econômico-financeira que envolve a
universalização do acesso, seja equilibrando as forças, seja proporcionando
meios como estabilidade e segurança jurídica para que os entes responsáveis
possam desenvolver bem suas funções. Também se espera que a ação regulatória
promova um contrapeso autônomo, dotado de técnica e isenção visando manter o
equilíbrio entre as diferentes forças que influenciam na prestação dos serviços
regulados.
Universalização da água
À luz da Lei 11.445/2007, que aponta para a
universalização como um de seus princípios, e considerando que esta necessidade
reforça o papel da regulação como um instrumento importantíssimo de propulsão
para o alcance deste objetivo, aponta-se que o exercício de uma regulação
efetiva, dotada de seus elementos essenciais (altíssima qualificação, autonomia
e independência, etc.) tende a contribuir para a melhoria da qualidade de vida
dos cidadãos, propiciando serviços abrangentes e de qualidade a preços módicos.
A pesquisa realizada envolveu uma extensa análise
dos contratos de concessão dos munícipios escolhidos, debruçando-se sobre como
está a participação do regulador na relação concedente—concessionário. Este
trabalho foi importante por gerar conhecimento nesta área em que há
institucionalidades tão variadas, bem como ausência de um marco regulatório
nacional bem definido.
Da análise dos contratos de concessão selecionados,
infere-se que a regulação exerceu baixa participação no que concerne ao seu
papel de compelir os regulados a buscarem este importante princípio legal.
Casos como o de Campos do Jordão e de Manaus são mais
preocupantes, o primeiro pela ausência de metas para a universalização e o
segundo por ficar claro que a empresa (neste caso privada) vem descumprindo as
metas acordadas e, ainda assim, conseguiu a prorrogação do contrato até 2045.
Concluiu-se neste trabalho que apesar de ter sido
criado todo um aparato legal e técnico destinado às atividades de regulação de
serviços de saneamento, a universalização das redes de abastecimento de água
ainda não foi priorizada como uma meta urgente por entes reguladores. Desta
conclusão não se infere que as agências reguladoras estejam deixando de atuar,
porém ressalta-se que estão em um nível abaixo do que podem e do que,
naturalmente, se espera delas.
Desafios
Vale considerar que a presença da regulação no
Brasil ainda é muito recente e que já evoluiu grandemente; assim, o cenário é
de boas expectativas em relação ao futuro. O que este estudo alerta é que as
agências devem se preparar política e tecnicamente (com grande prioridade para
a formação técnica) para superar os desafios postos à sua frente e assumir seu
lugar na condução das relações e manutenção do equilíbrio na prestação dos
serviços regulados. A atuação do regulador em abastecimento de água deve ir
muito além de ser um mero observador das deficiências de qualidade e do déficit
de cobertura. Como agente externo, de estado, deve compelir, sempre que
necessário, os agentes de governo a cumprirem seu papel em benefício do
cidadão, que é o mantenedor do estado.
Finalmente, adverte-se que há que se encarar o
problema da falta de acesso com a determinação que sua complexidade exige. As
desculpas que se renovam a cada momento institucional do Brasil atendem bem a
certos interesses, mas que, com toda certeza, não são os dos usuários excluídos.
Mesmo que estes consigam se munir de soluções improvisadas e, via de regra,
inadequadas, o que esperam e, de fato, têm direito, é receber um serviço de
qualidade e universalizado.