sexta-feira, 22 de novembro de 2013

‘O trabalho escravo foi um dos pilares de nossa economia, por isso nos custa tanto erradicá-lo’. Entrevista com José Armando Fraga Diniz Guerra

Coordenador Geral da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE), José Guerra foi entrevistado pela A Rel sobre o problema e a dimensão do trabalho escravo no Brasil. Um flagelo que nunca acaba.



               Foto: Gerardo Iglesias

-Como o senhor contextualiza o problema do trabalho escravo no Brasil atualmente?

-Vamos fazer um resumo histórico: No Brasil, a primeira denúncia de trabalho escravo data da década de 1970, quando o país passava por uma etapa ditatorial e tinha uma política de expansão colonizadora para a região amazônica e, nesse processo, surgiram várias denúncias sobre trabalho escravo.

O Estado brasileiro demorou duas décadas para dar solução a esta situação. Somente em 1990 é que o então presidente Fernando Henrique Cardoso começou a gerar algumas estruturas estatais para combatê-lo.

Em 1995 já haviam sido liberados 45 mil trabalhadores e houve um avanço no que se refere à conceituação do trabalho escravo contemporâneo.  Passou-se de uma situação apenas de restrição da liberdade para uma que também considere o ataque à dignidade do trabalhador.

Portanto, “condições degradantes de trabalho” e “jornadas extenuantes” foram termos que passaram a fazer parte do conceito de trabalho escravo, da mesma forma que o respeito às condições de alimentação, de moradia, de higiene e de tratamento dignos.  Estes conceitos fazem parte do texto que ainda está vigente, recebendo um forte reconhecimento por parte das organizações internacionais, entre elas, a OIT e a ONU.

Atualmente, este conceito de trabalho escravo, que é muito avançado, é o que rege no país, conjuntamente com una consciência estatal de combate ao trabalho escravo, porém cotidianamente somos surpreendidos pelas mudanças nas modalidades de trabalho escravo.

Hoje em dia no Brasil nos deparamos com o trabalho escravo urbano, vinculado à imigração, afetando na maioria das vezes os trabalhadores estrangeiros e em setores da produção que apresentam uma enorme terceirização como, por exemplo, a indústria têxtil e a construção civil.

Então, a política pública brasileira tem que ir se adequando e evoluindo a partir dos resultados da atuação estatal no combate ao trabalho escravo. Temos um sistema que funciona, entretanto temos que ter, hoje mais do que nunca, a consciência do que é o fenômeno do trabalho escravo no Brasil.

É possível considerar que, em termos exponenciais, o trabalho escravo se dê em uma minoria dos setores da produção, mas justamente devido ao tamanho da dinâmica da economia brasileira, trata-se de um número considerável de trabalhadores que passam por essa situação e também são montantes consideráveis de dinheiro gerados pelas empresas que se valem das práticas do trabalho escravo.

-Por que, para o senhor, o Brasil demorou tanto em abolir a escravidão?

-Historicamente, toda a sociedade brasileira, ao contrário de outras sociedades do novo mundo (América) tinha o trabalho escravo como parte fundamental do progresso econômico do Brasil colônia.

Inicialmente, tentaram escravizar os indígenas, mas isto não deu certo, então trouxeram contingentes de africanos para o trabalho escravo. Esta é uma das razoes pelas quais o Brasil é um dos países da América Latina com uma alta taxa de população afrodescendente. Infelizmente, um dos pilares da economia do país era o trabalho escravo e, possivelmente, por isto, nos custou tanto erradicá-lo.

Em que pese a Lei Aurea (1888) ter sido proclamada, foram precisos mais 60 anos para que as práticas de trabalho escravo fossem abolidas de fato.

Só a partir do governo de Getúlio Vargas é que foi criada uma legislação trabalhista, mas essa legislação abrange apenas os trabalhadores da cidade, porque, para os trabalhadores rurais, foram necessários quase 80 anos para que vissem os seus direitos trabalhistas equiparados ao restante dos trabalhadores e, para o serviço doméstico, foram precisos mais 125 anos, pois só agora começamos a regulamentá-lo no Brasil. Caminhamos muito atrasados em termos de direitos trabalhistas, o trabalho no Brasil é muito desvalorizado e, apesar dos avanços em termos legislativos, estamos ainda de fraldas no que se refere à legislação trabalhista.

-A matriz escravagista ainda está presente no DNA deste capitalismo agropecuário brasileiro…

-Sim, é correto. Está, como você diz, em seu DNA. Quando aqui em meu país lutamos contra o trabalho escravo, estamos lutando contra a nossa história, por isso é tão difícil, porque se trata de uma disputa cultural.

Por outro lado, atualmente muitos estabelecimentos agropecuários, os mesmos que contratam pessoal pouco qualificado, também empregam técnicos altamente qualificados para o manuseio e a manutenção de maquinaria de última tecnologia.

A demanda econômica brasileira levou estes setores a se modernizarem em termos de tecnologia, mas infelizmente essa modernização não está compassada com o progresso do pensamento e é aí que vemos surgir, em pleno século XXI, situações típicas da idade média.

-…Com cartões postais do século XVI…
-Correto. Em um mesmo canavial veremos como se chocam condições de trabalho medievais com condições de trabalho do século atual.

-A OIT, em um relatório sobre o trabalho escravo no Brasil, mencionava que o país é muito grande, com distâncias enormes, ainda que a maior distância seja a existente entre o lucro desenfreado e o respeito aos direitos humanos básicos…

-Frequentemente somos acusados de colocar paus na roda do setor produtivo, quando na realidade o que fazemos é o contrário, porque garantindo os direitos dos trabalhadores, as suas condições de trabalho e os seus salários é que promovemos uma economia sustentável.

Estamos sendo acusados por defender una proposta de expropriação de terras onde for encontrado o trabalho escravo. Se obtivermos essa medida, o que estaremos fazendo é valorizar a propriedade privada, porque se expropriarmos essa minoria de propriedades que não respeita os direitos humanos, a grande maioria ficará fortalecida e esse é o diálogo social que queremos instaurar.

No Brasil temos 1 por cento de escravagistas que mancham o resto dos produtores e a própria produção do país.

O que estamos tentando fazer é separar o joio do trigo para deixar clara a nossa postura de que, por um lado, existe uma produção que garante os direitos humanos e ambientais dos trabalhadores e, por outro, existe uma produção baseada no conceito da pura exploração humana.

-Qual é a sua postura diante desta proposta de regulamentação da PEC 57-A?

-Temos uma visão muito próxima à da CONTAG, acreditamos que esta proposta de regulamentação é primária e como tal tem que evoluir, avançar em três pontos fundamentais. Em primeiro lugar, que o conceito de trabalho escravo deva ser mantido da mesma forma como está no Código Penal.

Em segundo lugar, da forma que está atualmente redigida a proposta, está previsto que as terras ou os imóveis a serem expropriados serão apenas aqueles onde for constatada a exploração feita diretamente pelo proprietário do imóvel, mas a economia é bem mais complexa.

Na cadeia produtiva estão os serviços terceirizados, os comandos médios contratados pelo proprietário para que façam o seu trabalho, então não necessariamente o proprietário tem que estar presente com o chicote na mão para ser o responsável pelas condições de seus trabalhadores.

E o terceiro ponto se refere à necessidade de sentença condenatória para que a terra seja expropriada. Em nossa opinião, temos um grande problema com esse ponto, não apenas por uma questão de tempos, já que os processos judiciais geralmente são muito lentos, mas porque, em muitos casos, é encontrado trabalho escravo em propriedades que estão no nome de empresas e o código penal no Brasil não prevê a condenação criminal desta figura jurídica, inviabilizando a expropriação.

Então, haveria uma dissociação entre os exploradores, pois as pessoas físicas seriam plausíveis de expropriação enquanto que as empresas que não o seriam.

Se conseguirmos manter estes pontos, a PEC será positiva para o avanço no combate ao trabalho escravo, mas pelo contrário, se for aprovada agora como está, significará um grave retrocesso nesse sentido.

-Como o senhor avalia o trabalho de denúncia que a CONTAG e A Rel UITA estão desenvolvendo?

-Me parece correto, principalmente porque induz ao diálogo a partir da diversidade de posturas. A CONTAG, como participante da Comissão Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, é uma grande aliada nesta luta e esta parceria tem se demonstrado no trabalho diário que vem sendo desenvolvido com relação à PEC 57-A.

Entrevista socializada pela Regional Latino-Americana da UITA


Fonte: EcoDebate

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