Contra Reserva de Desenvolvimento Sustentável,
ruralistas sitiam cidade de Luciara, MT
Fazendeiros
locais espalham boatos, fecham acessos, queimam casas e fazem ameaças contra
camponeses em Luciara, situada na região do Araguaia.
Por Daniel Santini , da Agência de Notícias Repórter Brasil.
Disparo de bala no portão da casa de José Raimundo
Ribeiro da Silva. Clique na imagem para ampliar. Foto: Arquivo Pessoal
A cidade de Luciara, na região do Araguaia, no
nordeste do Mato Grosso, foi sitiada com episódios de violência no último final
de semana. Em protesto contra os estudos para a criação de uma Reserva de
Desenvolvimento Sustentável em uma região de várzea nas margens do rio
Araguaia, ruralistas bloquearam todos os acessos à cidade de quinta-feira, 19,
a domingo, 22, queimaram duas casas de camponeses locais, expulsaram
professores e estudantes universitários que visitavam a região, fizeram ameaças
e espalharam boatos de que a cidade seria totalmente desocupada pelo Governo
Federal, provocando revolta entre a população. Um tiro chegou a ser disparado
contra a casa de José Raimundo Ribeiro da Silva, professor de filosofia e
história e diácono local, e o vereador Jossiney Evangelista Silva (PSDB),
indígena da etnia Kanela, foi cercado, impedido de entrar na cidade e ameaçado
em um dos bloqueios. Ambos são favoráveis à criação da reserva.
Dada a gravidade da situação, o Ministério Público
Federal entrou com pedido de prisão provisória contra quatro pessoas no
domingo, 22, deferido no mesmo dia pela Justiça. No começo da semana, a Polícia
Federal cumpriu os mandados e prendeu três dos acusados de um conjunto de
crimes que inclui incêndio, ameaça à vida, formação de quadrilha e cárcere
privado. Um quarto suspeito continuava foragido até a publicação desta reportagem.
“Além das prisões, estamos investigando o motivo de os órgãos públicos da
cidade não terem funcionado na sexta-feira. A menos que estejam apoiando, não
faz sentido repartições fecharem as portas”, diz o procurador federal Lucas
Aguilar Sette, que visitou a cidade para reunir provas e identificar os
responsáveis pelo que classifica como uma explosão de violência. “Os
fazendeiros e políticos locais cooptaram pessoas promovendo um churrasco de
três dias e passando informações equivocadas para a população. As pessoas
bebiam, iam fazer ameaças e voltavam para a festa”, explica o procurador, que
diz que, para provocar pânico, os agitadores utilizaram o exemplo de Posto da
Mata, vilarejo irregular construído dentro da Terra Indígena Maraiwatsédé e desocupado no ano passado.
Autoridades federais e estaduais também foram
mobilizadas e informadas sobre o problema, incluindo o Ministério da Justiça, a
Delegacia Geral da Polícia Federal, a Secretaria Estadual de Justiça e Direitos
Humanos e a Secretaria Estadual de Segurança Pública. “A população está muito
mal informada. A mídia está vendendo essa ideia. E é uma situação completamente
diferente. Luciara não será desocupada, não tem relação”, diz o procurador.
"Fazendeiros e grileiros mentiram dizendo
que
a cidade seria evacuada
e que viraria uma reserva. Enganam o povo e
fazem ameaças"
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“Fazendeiros e grileiros mentiram dizendo que a
cidade seria evacuada e que viraria uma reserva. Enganam o povo e fazem
ameaças. Falam como se fosse igual, mas Luciara é um município constituído e
Posto da Mata era uma vila em uma Terra Indígena. Pedro Casaldáliga sempre disse para não erguermos
igrejas em Posto da Mata porque a cidade estava em Terra Indígena. Precisamos
que órgãos governamentais mostrem ao cidadão comum a realidade”, diz José
Raimundo Ribeiro da Silva, o Zecão, como é conhecido o professor e diácono que
teve sua casa atingida por um disparo. “Estamos sendo vítimas do
‘agrobanditismo’. Sou a favor da criação da reserva, da preservação da margem
do rio Araguaia, de que o avanço da soja não suje a água de veneno. Tenho
recebido ameaças e temo pela minha vida”, completa. A Comissão Pastoral da Terra divulgou nota
denunciando o atentado contra o diácono.
Os retireiros
A revolta está relacionada à insatisfação de
latifundiários locais com a perspectiva de criação de uma Reserva de
Desenvolvimento Sustentável, que beneficiaria camponeses conhecidos como
“retireiros”. São criadores de gado que usam as áreas de várzea do rio Araguaia
para o pastoreio durante as secas e, quando o rio sobe, retiram os animais para
terras mais elevadas. Eles criam o gado de maneira solta em uma região de
pastagem comum, nativa. Não há cercas nas áreas, já que impediriam o acesso à
água pelo gado e acarretariam no pisoteio exagerado de algumas áreas de
pastagens.
“Temos de preservar uma comunidade que há mais
de 60 anos lida com gado no ‘varjão’ do Araguaia. Esse gado se sustenta
ali e fica quatro, cinco meses na área de várzea. Depois, o retireiro retira e
vai para o lugar alto, onde constrói sua casa, tem uma horta. Ele tira o leite
e espera a água baixar para voltar com o gado para lá. Nessa labuta, [os
retireiros] construíram saberes sobre a biodiversidade, a fauna e flora, o
relacionamento com o rio. Eles conhecem a natureza como poucos”, diz Zecão.
Incêndio destruiu casa de Rubem Sales, presidente
da Associação dos Retireiros do Araguaia. Foto: Arquivo Pessoal
“Houve um recrudescimento [da violência] por parte
de algumas pessoas que são contrários à criação da Unidade de Conservação. Esse
é o motivo”, explica Fernando Francisco Xavier, coordenador Regional do
Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), autarquia do
Ministério do Meio Ambiente responsável pelas Unidades de Conservação Federais.
“Pode haver oposição, mas não podemos admitir que um Estado paralelo se instale,
que interesse apenas alguns grupos. Isso é inadmissível”, diz Fernando.
A mobilização está diretamente relacionada com a
disputa por terras. Há grilagem na região e envolvidos temem não poder mais
comercializar áreas.
Acadêmicos expulsos
A confusão começou, segundo o coordenador do ICMBio, porque pesquisadores ligados à Universidade Federal da Amazônia que visitavam a região foram confundidos com funcionários do Governo. “Surgiu o boato de que iríamos fazer uma consulta pública sobre a criação da reserva e a barreira visava impedir o acesso do Instituto Chico Mendes. Não tem sentido fazer uma consulta pública às escondidas, elas são previamente agendadas e amplamente divulgadas”, afirma. “Podemos fazer o debate e é legítimo [que haja oposição], mas aconteceram atentados contra representantes da comunidade que revelam a fragilidade e vulnerabilidade a que as lideranças estão submetidas”, completa o representante do ICMBio.
Mesmo com a prisão de três pessoas e a operação
realizada no começo da semana, as lideranças locais ainda temem que a situação
se agrave. “Estamos sozinhos aqui agora que a Polícia Federal foi embora, sem
nenhuma proteção”, diz Rubem Taverny Sales, presidente da Associação dos
Retireiros do Araguaia, proprietário de uma das casas queimadas durante os
ataques.
Fiquei apavorado, tive
medo que eles me torturassem. As pessoas
estavam exaltadas,
um grupo me cercou,
tirou a chave da
ignição da moto e
tentou agredir
minha prima
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A outra é de Jossiney Evangelista Silva, o vereador
indígena da etnia Kanela, que foi impedido de entrar na cidade, cercado e
ameaçado. “Fiquei apavorado, tive medo que eles me torturassem”, conta. Ele
procurou a polícia imediatamente ao saber que haviam ateado fogo na sua casa,
e, ao tentar se dirigir à delegacia para registrar a ocorrência, foi parado no
bloqueio. Nem a presença de policiais, que haviam ido com o vereador até o
incêndio, impediu que ele fosse intimidado. “As pessoas estavam exaltadas, um
grupo me cercou, tirou a chave da ignição da moto e tentou agredir minha prima
Lidiane, tentando tomar a máquina fotográfica da mão dela”, conta. “Do bloqueio
ninguém teve coragem nem de tirar foto. Eles falaram que eu tinha de deixar a
moto e voltar a pé, mas eu não aceitei. No fim, conseguimos ir embora.”
Na barreira armada, além dos primeiros
pesquisadores, também foram parados professores e estudantes ligados ao projeto
Nova Cartografia Social da Amazônia, que realizariam uma Oficina de Mapas com
os retireiros. Entre os expulsos estão os professores Cornélio Silvano
Vilarinho Neto e Antonio João Castrillon. Os acadêmicos fizeram críticas públicas à postura agressiva dos
ruralistas. “A violência que atinge as pessoas pelo constrangimento,
intimidação e destruição, visa também enfraquecer e desestruturar a identidade
coletiva do grupo, que está fortemente ligada ao processo de territorialização
específica das áreas de retiro”, escreveu Castrillon.
Soja, grilagem e terras públicas
A disputa fundiária em Luciara está relacionada ao avanço do monocultivo de soja na região do Araguaia, assunto que foi tema de reportagem publicada em fevereiro pela Repórter Brasil. Com a expansão das plantações na região, as terras estão cada vez mais valorizadas e o desmatamento aumenta devido à necessidade de novas áreas para plantio. Além do espaço necessário para o cultivo, o fato de o veneno utilizado nas lavouras afetar os rios também é motivo de conflitos.
Em Luciara, em 2009, como parte dos estudos para criação da reserva, foi feito um levantamento fundiário completo de títulos e ocupantes de uma área de 198 mil hectares, considerada ideal para a reserva. Para minimizar a tensão fundiária, porém, o ICMBio passou a trabalhar com 110 mil hectares. “Vimos a necessidade de diminuir para uma área menor em função dos conflitos existentes. Decidimos delimitar o espaço de uso da comunidade, ainda que em prejuízo dos retireiros para viabilizar a reserva. Isso mesmo considerando que muitas terras não têm atividade agrícola”, explica Fernando Francisco Xavier, o coordenador do ICMBio. A Secretaria de Patrimônio da União foi acionada para averiguar quais são as áreas públicas que poderiam ser incluídas na reserva. Os retireiros já entraram com pedido de Concessão de Autorização de Uso Sustentável (Caus).
Plantações de soja avançam em direção ao município de Luciara, conforme é possível ver via satélite. Imagem: MapBox
Fonte: EcoDebate
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