Mananciais – Billings exemplifica
um dos maiores desafios nas regiões metropolitanas: planejamento
urbano.
Por Sucena Shkrada Resk
As leis de proteção dos
mananciais existem desde os anos 1970 (com atualização em 1997) e o
problema da poluição das águas formadoras do reservatório já é
discutido desde aquela época.
Aos 94 anos, a Represa Billings, na
Bacia Hidrográfica do Alto-Tietê, é considerada como “a maior
caixa d´água” da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), além
de ser um destino ecoturístico em certos trechos, utilizada para
controle de cheias no rio Pinheiros e fonte para a geração de
energia na Usina Hidroelétrica Henry Borden, em Cubatão. Com 1,2
bilhão de metros cúbicos de água, este reservatório de usos
múltiplos retrata, no entanto, em anos consecutivos, os desafios e
ônus impostos pelo crescimento desordenado das cidades.
O mais recente levantamento da série
do
Projeto
de Índice de Poluentes Hídricos (IPH) da Universidade
Municipal de São Caetano do Sul (USCS) acentua um alerta recorrente
sobre a qualidade das águas em 164 pontos de pesquisa. O
levantamento tem sido feito desde 2015 no reservatório, que abastece
mais de 1,6 milhão de pessoas principalmente na zona Sul da capital
e municípios do Grande ABC (Santo André, São Bernardo do Campo e
Diadema), pelo Sistema Rio Grande. Atualmente as análises estão
sendo aprimoradas com o sequenciamento genético dos microorganismos
e levantamento da composição do que está no fundo do reservatório.
A apuração expressa o quanto o
saneamento ambiental ainda é deficiente na região, acarretando
impactos em diferentes trechos do reservatório. Neste ano, no braço
do Rio Grande, foi apurado que a qualidade da água está regular; no
dos rios Pequeno, Capivari e Pedra Branca, boa; no de Taquacetuba,
regular próximo de ruim; no de Bororé, ruim; nos de Grota Funda,
Alvarenga, Cocaia (Corpo Central), péssima. O resultado do
levantamento foi apresentado pela professora e pesquisadora Marta
Angela Marcondes, coordenadora do projeto, durante o I Fórum sobre
Proteção de Mananciais – 10 Anos da
Lei
Específica do Reservatório da Billings, neste mês, na USCS.
Outro aspecto relevante nesta
problemática é a compreensão da ocupação e uso do solo. Na
sub-região Billings – Tamanduateí, o município de Santo André
tem 54% de sua área total inseridos em Área de Proteção de
Mananciais (APM); São Bernardo do Campo (53%); Diadema (22%), Mauá
(19%) e Ribeirão Pires (64%) e Rio Grande da Serra (100%), além de
parte de São Paulo (11%).
São inúmeros fatores que levam a
esta poluição hídrica. A deficiência da coleta e de tratamento de
esgoto doméstico e de efluentes industriais na maioria dos
municípios; a lentidão de décadas para a despoluição dos rios
Tietê, Pinheiros e Tamanduateí e afluentes, o aumento irregular de
imóveis e desmatamento no entorno da represa, como também o despejo
irregular de efluentes agrícolas e de resíduos sólidos. Um risco à
saúde ambiental, com bactérias de todos os tipos, causadoras de
problemas gastrointestinais e de pele, além dos resíduos tóxicos
provenientes de metais pesados.
Soma-se a isso, a interferência dos
períodos de chuva e estiagem que acentuam os problemas.
Onde a situação é avaliada como
melhor, a exemplo do braço Capivari, a justificativa é de que a
região é ainda bem isolada, pouco urbanizada e mantém matas
preservadas e relevo acidentado.
Análise do fundo do
reservatório
O Projeto IDH/USCS, desde o ano
passado, está aprimorando a análise das águas do reservatório e
novos alertas surgem. “Também estamos estudando o fundo do
reservatório, que são acúmulos de profundidade de oito a 20
metros. A situação é de ruim a péssima, nos trechos de Bororé e
Grota Funda”, diz a bióloga. É um universo de lodo e de uma
diversidade de elementos, como microplásticos e metais pesados.
Em abril deste ano, moradores de
municípios do Grande ABC se depararam com uma água de tom amarelo e
marrom e odor desagradável, que saia das torneiras. Segundo a
Sabesp, a cor era proveniente da quantidade superior de ferro e
manganês, que emergiu do fundo da represa, com o fluxo de água
provocado pelo excesso de chuva da represa do Rio Grande para a
Billings. Algo que não ocorria desde 2013.
Nas águas da Billings, ainda são
encontrados fármacos, hormônios, antibióticos, agrotóxicos e
microcistina (toxina por pequenos organismos), que não passam por
tratamento, segundo Marta. “Acabam indo para nossas torneiras”,
afirma. Nem tudo é passível de solução nas
estações
de tratamento de água.
No ano passado, também foram
encontrados 12 novos grupos bactérias que até então não haviam
sido detectadas. De certa forma, representa uma “caixa-preta” de
sedimentos que podem causar mais comprometimentos à saúde. A
Billings também sofre periodicamente com a eutrofização, quando o
excesso de esgoto e insolação tropical contribuem para a
proliferação de algas.
A Companhia Ambiental do Estado de
São Paulo (Cetesb), em seu
Relatório
da Qualidade das Águas Interiores no Estado de São Paulo 2018,
informou que os pontos localizados no Complexo da Billings e em um
ponto no reservatório do Rio Grande, no município de Ribeirão
Pires, apresentaram a classificação anual ruim para o Índice da
Comunidade Fitoplantônica, principalmente em razão da grande
presença de organismos e cianobactérias.
Atualmente são mantidos na bacia da
Billings, pela Cetesb, as Estações de monitoramento automático on
line da qualidade da água Ribeirão Pires, no braço do Rio Grande
junto à captação da SABESP, para onde afluem as águas do ribeirão
Pires; no braço do Taquacetuba; e na barragem reguladora
Billings-Pedras (Summit Control).
Somado a estes problemas,
recentemente houve a constatação de mortandade de peixes em casos
isolados. “Caiu um tipo de óleo, no Braço Central, perto da
Imigrantes, que impediu a entrada de luz e baixou o oxigênio na
água”, explica a pesquisadora.
Segundo Marta, os estudos do
IPH/USCS têm sido encaminhados aos órgãos públicos gestores
competentes, para o auxílio de políticas públicas mais eficientes,
e ao Ministério Público Estadual.
Riqueza ambiental
Para melhor compreensão da
importância da despoluição, mais um argumento é quanto ao
patrimônio ambiental da Sub-bacia da Billings ser de extrema
relevância. Em levantamento de fauna e flora, algumas espécies de
flora reféns da pressão no entorno na região são a bromélia
Tillandsia linnearis, considerada extinta antes destes estudos,
as orquídea-de-Loddigess Catleya loddigessi e a
orquídea-de-samambaiuçu Zygopetalum maxillarie, o
bambú Merostachys neesii e a palmeira
prateada Lytocaryum hoehnei. A ictiofauna da Billings
tem diferentes espécies, como o lambari – Astyanax
fasciatus, a traíra – Hoplias malabaricus, o
cará – Geophagus brasiliensis e a coridora
– Corydoras aeneus.
A região da sub-bacia também é
refúgio para diferentes aves, como o tucano-debico-verde
–
Ramphastos dicolorus -, a marreca caneleira
–
Dendrocygna bicolor – e a fragata comum
–
Fragata magnificens. Estas e outras características
da Billings, são descritas no
Caderno
de Educação Ambiental, na edição especial Mananciais: Billings,
um trabalho de 300 páginas com vasta informação, da Secretaria de
Estado do Meio Ambiente, em 2010.
Ao se conhecer melhor esta região
de mananciais, o que fica claro é a importância da valorização
ambiental da região, com o que ainda resta de Mata Atlântica no
entorno e o quanto pode ser recuperado.
Importância das unidades de
conservação
Na Sub-bacia Billings existem três
áreas tombadas: a Área Natural Tombada da Serra do Mar; a Área
Tombada da Vila de Paranapiacaba (Santo André) e a Área Tombada da
Cratera da Colônia (São Paulo). Unidades de conservação servem
como meio de inibir e conscientizar sobre o perigo do desmatamento e
poluição.
Na região da Billings, estão o
Parque Estadual da Serra do Mar – Núcleo Itutinga-Pilões, e o
Parque Municipal Estoril, em São Bernardo do Campo; o Parque
Municipal Milton Marinho de Moraes, em Ribeirão Pires; o Parque
Natural Nascentes de Paranapiacaba e Parque Natural Municipal do
Pedroso, em Santo André; o Parque Fernando Vitor de Araújo Alves,
em Diadema, e as Áreas de Proteção Ambiental municipais (APAs)
Capivari-Monos e Bororé-Colônia, na zona Sul de São Paulo. Somados
a estas UCs, estão terras indígenas guarani.
Mas apesar de estarmos no século
XXI, grande parte do reservatório ainda recebe bilhões de litros de
esgoto in natura. Historicamente o problema vem de longa data. As
leis de proteção dos mananciais existem desde 1976 e a discussão
sobre o enfrentamento e necessidade de solução para o problema da
poluição das águas do reservatório já eram discutidos desde
aquela época.
Soluções esperadas há
décadas
Diferentes governos (estaduais,
municipais), por décadas, se comprometeram com soluções para a
despoluição, mas o problema continua. Nos últimos anos, novos
anúncios do poder público têm sido feitos quanto a obras
milionárias de saneamento, e com metas ambiciosas. Um deles é do
Programa Pró-Billings, em São Bernardo do Campo, que tem o objetivo
de garantir 100% de coleta e tratamento de esgoto de todo o “Grande
Alvarenga” até o ano que vem. A fase anterior foi na região do
Batistini. Uma parceria da prefeitura municipal com a Companhia de
Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), com recursos
nacionais e internacionais.
O Governo do Estado também divulgou
que até 2022 o rio Pinheiros estará limpo. Por outro lado, a
população, por meio de organizações socioambientais, movimentos,
academia e ministério público têm cobrado as realizações, que
têm como princípio um planejamento urbano com visão de longo
prazo.
Externalidades afetam
comunidades
O aspecto humano é mais um elemento
importante no Projeto IPH/USCS, que não pode ser menosprezado pela
gestão pública, segundo a bióloga. Marta Marcondes alerta que há
também uma quantidade significativa de externalidades que atingem
quem vive bem próximo da represa, devido à baixa qualidade
apresentada na maior parte dos trechos do reservatório. “São
casos de depressão, ansiedade, transtorno de estresse
pós-traumático. Muitos sofrem o estigma de viverem lá. Dessa
forma, o Sistema Único de Saúde (SUS) também é onerado. Quatro
aldeias indígenas guarani e cerca de 300 pescadores artesanais já
foram afetados”, afirma.
No Plano Municipal de Saneamento
Básico de São Bernardo do Campo, em 2017, foi detectado que a
Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Riacho Grande, que fica próxima
à Billings, atendeu em 2016 índice 55% superior de pacientes com
doenças transmitidas pela água do que a média do município. A
unidade atingiu a taxa de 100 casos a cada mil moradores na análise
de incidência do problema, a maior delas medida no município.
Leis descumpridas
O que causa apreensão é o fato de
o arcabouço legal não estar sendo suficiente para alterar este
cenário ao longo dos anos, que infere também a relação de comando
e controle. A existência da Lei da Billings, que completou 10 anos
em 2019, apesar de ser importante, não consegue frear todos estes
problemas. A gestão é composta pelos órgãos das administrações
públicas estadual e municipais, um órgão colegiado (Comitê de
Bacia Hidrográfica do Alto Tietê – Subcomitê de Bacia
Hidrográfica Billings-Tamanduateí – SCBH-BT) e um órgão
técnico. Segundo Marta, outras legislações também deveriam ser
respeitadas, como a Lei da Mata Atlântica, o Código Florestal e da
Reserva da Biosfera do Cinturão Verde da Cidade de São Paulo.
Segundo o advogado Virgílio Alcides
de Farias, especialista em Direito Ambiental, é preciso ressaltar
que a Constituição brasileira define que o Estado, o poder público
com a cobrança da coletividade, que já faz o seu papel têm o dever
de manter o equilíbrio ambiental para que o meio ambiente seja
salubre, entretanto, o poder público não tem cumprido seu papel
quanto à represa que está degradada.
Mais um descumprimento, de acordo
com Farias, é quanto ao artigo 46 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias da Constituição do Estado de São
Paulo. O texto determina, no prazo de três anos, a contar do dia 5
de outubro de 1989, os Poderes Públicos Estadual e Municipal
ficariam obrigados a tomar medidas eficazes para impedir o
bombeamento de águas servidas, dejetos e de outras substâncias
poluentes para a represa Billings.
O planejamento urbano é um ponto
estratégico nesta análise, reitera o engenheiro Renato Tagnin,
especialista no tema mananciais e expansão urbana. “Quem bebe a
água da Billings e da Guarapiranga, parte é de reuso. Os
tratamentos não alcançam os parâmetros adequados. Ainda temos a
vulnerabilidade dos aquíferos, com a superexploração das águas
subterrâneas. O mercado não atribui o valor à vegetação. Outras
pressões são viárias, como os projetos de novos acessos do
Rodoanel…”, explica.
Mais uma análise feita por Tagnin
se refere à projeção da expansão urbana para 2030 na Região
Metropolitana de São Paulo (RMSP). “Praticamente a bacia toda
deverá ser ocupada. É um cenário dantesco. Até fundos de vale,
acabando com a reserva da biosfera… E o plano de abastecimento da
macrometrópole prevê a busca da água cada vez mais longe”.
Com o histórico de mobilizações
que se estende há décadas, o que fica notório é que a despoluição
da Billings é uma questão muito maior, que envolve a RMSP, quanto
ao modelo de desenvolvimento.
Basta dizer que o
relatório
sobre a Vulnerabilidade Hídrica da RMSP, divulgado pelo
Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (PROAM), em 2017,
sinaliza esta questão apresentada pela Campanha Billings, eu te
quero viva!, que existe desde os anos 90. Este reservatório que foi
construído com o propósito de geração de energia, acabou se
tornando uma fonte imprescindível para o abastecimento de água.
*Sucena Shkrada Resk é jornalista,
formada há 27 anos, pela PUC-SP, com especializações lato sensu em
Meio Ambiente e Sociedade e em Política Internacional, pela FESPSP,
e autora do Blog Cidadãos do Mundo – jornalista Sucena Shkrada
Resk (
https://www.cidadaosdomundo.webnode.com),
desde 2007, voltado às áreas de cidadania, socioambientalismo e
sustentabilidade.