As armadilhas do desenvolvimento sustentável. Entrevista Elder Andrade de Paula
“O cenário atual da Amazônia hoje é muito mais grave do que foi no período do estado desenvolvimentista comandado pela ditadura militar. À época, as formas destrutivas eram visíveis; agora, boa parte das formas destrutivas é invisível”, constata o agrônomo.
A expansão da pecuária e a exploração madeireira na Amazônia ultrapassaram os efeitos tradicionais de expulsão das populações camponesas e extermínio dos povos indígenas. Hoje, está em curso um “tipo de destruição” que não é muito “visível”, diz Elder Andrade de Paula à IHU On-Line, em entrevista concedida por telefone. “Estou me referindo ao modo como a pecuária tem deixado de ser uma atividade somente ligada a grandes, médias e pequenas propriedades, e tem se disseminado na pequena propriedade de produção camponesa e também entrado nas Unidades de Conservação”, menciona.
Andrade de Paula se refere a medidas ambientais implementadas nos últimos dez anos, as quais são revestidas com o discurso da sustentabilidade, mas fizeram triplicar a exploração madeireira e a expansão pecuária no Acre. “Trata-se de uma política de dar com uma mão e tirar com a outra, porque ao mesmo tempo em que se anunciou uma expansão do controle da propriedade da terra sobre controle público, para ser concedida como forma de uso para seus ocupantes, apareceu um conjunto de políticas que fizeram com que esse público fosse apropriado para fins privados. O exemplo mais emblemático disso foi a mal denominada lei de Florestas Públicas, Lei 11.284, aprovada em 2006”, esclarece. Segundo ele, “essa lei colocou, sob o domínio efetivo das grandes corporações vinculadas à exploração e comércio mundial de madeira, a exploração de um potencial de 50 milhões de hectares na Amazônia”.
Autor do livro (Des )envolvimento insustentável na Amazônia Ocidental, produzido a partir da sua tese de doutorado, Elder enfatiza que ao longo da última década também foram criadas “políticas estratégicas de exploração de madeira acobertadas por nomes bastante simpáticos, como Planos de Manejo Florestal Sustentável de Base Comunitária”.
Segundo ele, “o Manejo Comunitário é muito enganoso, porque não há nada de comunitário. As comunidades só veem as madeiras mais valiosas saírem de suas áreas, sem terem qualquer participação nisso, porque o processo de exploração da madeira é mecanizado. As empresas compram a madeira e atuam com outras que são subsidiárias para fazer o corte e o transporte”.
Elder Andrade de Paula é licenciado em Ciências Agrícolas pela UFRJ, especialista em Ciências Sociais com enfoque na Amazônia pela Universidade Federal do Acre – UFAC, mestre e doutor em Desenvolvimento Agrícola e Sociedade. Atualmente é docente dos programas de Mestrado em Desenvolvimento Regional e de Ecologia e Manejo de Recursos Naturais, da Universidade Federal do Acre – UFAC.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é o atual quadro da expansão da pecuária e da exploração madeireira no Acre? Por quais razões essas atividades triplicaram na última década?
Elder Andrade de Paula – Já havia sido apontada uma tendência, numa pesquisa que realizei em 2002, de que, ao contrário do que se afirma no Brasil e no exterior, na Amazônia havia possibilidades animadoras para redirecionar o processo de desenvolvimento no sentido de torná-lo menos predatório e mais justo social e ambientalmente. O que percebemos na última década foi o contrário, ou seja, a reiteração de um processo destrutivo de expansão do capital na Amazônia, encoberto pela propaganda que se converteu em ideologia do desenvolvimento sustentável.
Quando analisamos o estado do Acre, considerado o mais avançado na adoção dessas políticas e estratégias orientadas segundo o chamado desenvolvimento sustentável, tal como preconizado pelo Banco Mundial, vemos a expansão das atividades mais destrutivas da Amazônia: a pecuária extensiva de corte e a exploração florestal madeireira. Na última década, houve uma expansão monumental dessas duas atividades. A pecuária, que em 1998 tinha um rebanho de aproximadamente 800 mil cabeças de gado, hoje está perto de três milhões de cabeças. A exploração madeireira, que em 1998 estava em torno de 300 mil metros cúbicos, hoje se aproxima de um milhão de metros cúbicos. Eu me refiro à data de 1998, porque foi em 1999 que teve início o governo identificado com o propósito de implantar o dito desenvolvimento sustentável.
IHU On-Line – Quais são os efeitos diretos da expansão da pecuária e da exploração madeireira na região?
Elder Andrade de Paula – Sempre se associou à expansão da pecuária a desapropriação de territórios, com a expulsão de populações camponesas para as cidades e o extermínio de povos indígenas. Esses são os efeitos tradicionais da expansão da pecuária. Porém, hoje, essa expansão tem gerado outro tipo de destruição, que não é muito visível. Estou me referindo ao modo como a pecuária tem deixado de ser uma atividade somente ligada a grandes, médias e pequenas propriedades e tem se disseminado na pequena propriedade de produção camponesa e também entrado nas Unidades de Conservação. Houve denúncias, há dois ou três anos, da expansão da pecuária nas reservas extrativistas Chico Mendes, porque as populações que moram ali acabam sendo forçadas ou incentivadas a ampliarem suas áreas de campo para dedicarem-se a essas atividades, uma vez que a atividade extrativista vai sendo estrangulada porque não tem incentivo para a produção de castanha ou para outras atividades ligadas à existência dessas comunidades e povos. O mais incrível é que, quando as comunidades fazem isso, são criminalizadas. Havia uma forte propensão do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade — ICMBio de expulsar das reservas extrativistas aquelas famílias que estavam fazendo o uso de áreas para a expansão da pecuária.
A pecuária avança, degrada a floresta, e posteriormente há algumas iniciativas governamentais ditas para recuperar a área degradada. Ocorre que essa recuperação se dá com a plantação de monocultivos. No plano de governo do Acre está anunciada claramente a intenção de reflorestar 40 mil hectares de área degradada com a cultura do dendê e com outras formas de cultivo para a produção de energia. A cana-de-açúcar já expandiu de forma razoável no Eixo da BR-317. Então, a pecuária foi incentivada com financiamentos para destruir, e agora a área destruída será recuperada por grandes empresas, as quais receberão financiamento para isso. Assim, elas ganham de outro lado. E não se trata de recuperar a área, mas de intensificar a destruição com o monocultivo.
As consequências sociais são dramáticas em um estado que não tem indústrias, a população é expulsa do campo, vai para a cidade, onde não tem ocupação e emprego, e acaba trabalhando em subempregos e ficando refém dos programas assistencialistas e clientelistas que dominam o poder político regional e oligárquico. Os dados do IBGE são assustadores, porque demonstram que metade da população do Acre vive de programas sociais, a renda é muito concentrada, a propriedade da terra é concentrada: 540 propriedades detêm 78% da terra de domínio privado.
IHU On-Line – Quais foram as políticas implantadas na última década e que geraram esse cenário, a exemplo da criação de Unidades de Conservação, de Reservas Extrativistas?
Elder Andrade de Paula – Trata-se de uma política de dar com uma mão e tirar com a outra, porque ao mesmo tempo em que se anunciou uma expansão do controle da propriedade da terra sobre controle público, para ser concedida como forma de uso para seus ocupantes, apareceu um conjunto de políticas que fizeram com que esse público fosse apropriado para fins privados. O exemplo mais emblemático disso foi a mal denominada lei de Florestas Públicas, Lei 11.284, aprovada em 2006.
IHU On-Line – Quando Marina Silva era ministra do Meio Ambiente?
Elder Andrade de Paula – Sim, ela era ministra do Meio Ambiente. Essa lei colocou, sob o domínio efetivo das grandes corporações vinculadas à exploração e comércio mundial de madeira, a exploração de um potencial de 50 milhões de hectares na Amazônia. Aliado a isso foram criadas outras políticas estratégicas de exploração de madeira acobertadas por nomes bastante simpáticos, como Planos de Manejo Florestal Sustentável de Base Comunitária. No Acre existem licenciamentos para 23 mil hectares, e a proposta de governo no período de 2010 a 2014 é ampliar para 280 mil hectares. O Manejo Comunitário é muito enganoso, porque não há nada de comunitário. As comunidades só veem as madeiras mais valiosas saírem de suas áreas, sem ter qualquer participação nisso, porque o processo de exploração da madeira é mecanizado. As empresas compram a madeira e atuam com outras que são subsidiárias para fazer o corte e o transporte.
Para você ter uma ideia, as famílias que trabalhavam na floresta Estadual do Antimary, que é a primeira unidade de experimentação no dito Manejo Florestal Sustentável, recebiam em média 800 reais mensais. O metro cúbico de madeira certificada no município de Rio Branco custa 600 reais. Então se você considerar que dessas unidades saem, no mínimo, 30 metros cúbicos de madeira por mês, é possível ter uma ideia de qual é o resultado prático disso. O resultado econômico dessa atividade novamente se concentra fora da região, com a participação do poder oligárquico, que se beneficia. Isso gera um estrangulamento na cidade, porque marcenarias que compravam madeira em torno de 400 reais o metro cúbico, hoje encontram o metro cúbico a 600 reais.
IHU On-Line – Além da exploração madeireira e da expansão da pecuária, quais são os indícios de desenvolvimento insustentável na Amazônia Ocidental?
Elder Andrade de Paula – Agravam-se os conflitos por causa da propriedade da terra. O Caderno de Conflitos da Comissão Pastoral da Terra — CPT mostra claramente a linha de conflitos nessas áreas em que a madeira é explorada pelo plano de manejo. Essas atividades se integram ao processo de retomada do ciclo extrativista na América Latina. Além da madeira, da expansão da pecuária e do monocultivo, também está prevista a exploração de gás e petróleo no Parque Nacional da Serra do Divisor e a possibilidade de exploração de gás de xisto, que é destrutiva ambientalmente.
IHU On-Line – Qual é o destino dessa madeira?
Elder Andrade de Paula – Os laminados são destinados ao Centro-Sul, mas, do total da madeira explorada, 35% se destina ao mercado externo e algo como 40 ou 50% é destinado ao Sudeste e Centro-Sul. Pouco fica no Acre. Essa atividade é fortemente subsidiada com isenção fiscal. Então as populações deixam de se beneficiar porque o Estado financia grandes empresas.
IHU On-Line – O senhor diz que as linhas de crédito no Acre servem para articular as economias que chama de marrom e verde. Pode explicar esse panorama? Quais são essas linhas e o que denomina de economia marrom e verde?
Elder Andrade de Paula – Os incentivos para a produção são oferecidos através de linhas de crédito do governo federal. A indústria madeireira também é financiada pelo BNDES. Em Xapuri, o BNDES financiou 60 milhões para a construção de uma indústria. Construiu o prédio, comprou as máquinas para operar, e depois o governo entregou a empresa na forma de concessão para a exploração privada. Além de essa indústria operar em uma instalação com maquinários adquiridos com recursos públicos via BNDES, ela também está comprando madeira de unidades que são de domínio público.
O governo estadual também financia a infraestrutura no fornecimento de energia, de construção de infraestrutura de transportes, como é o caso da estrada que liga Rio Branco a Cruzeiro do Sul, a qual foi financiada pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento. As madeireiras e grandes fazendas dedicadas à exploração pecuária também recebem um alento a mais por conservarem algumas áreas, através de algo chamado de Mercado de Crédito de Carbono.
IHU On-Line – Que aspectos devem ser considerados no debate regional sobre sustentabilidade? Em que consistiria uma política pública eficiente para garantir a sustentabilidade regional da Amazônia?
Elder Andrade de Paula - Algumas coisas são fundamentais. A primeira é fazer com que os sujeitos sociais mais interessados em reverter esse processo tenham maior poder de voz no sentido de propor e implementar outras políticas. Não estou tentando reinventar nada, estou lembrando o que aconteceu na década de 1980, quando os movimentos sociais reativos se interpuseram ao processo de expansão predatória e propuseram alternativas consideradas por eles mais adequadas ao seu modo de vida e às suas aspirações, como foi o caso das reservas ativistas. Nos últimos 20 anos, houve uma tentativa de aniquilação do poder de pressão dessas comunidades camponesas, dos povos indígenas e suas representações no sentido de amordaçá-los e fazer com que não se constituíssem obstáculos nesse conjunto de políticas.
O ponto essencial é que essas representações, esses movimentos, reconquistem uma autonomia suficiente para que sua voz seja ouvida e não seja mais representada por terceiros, sejam eles partidos políticos, grandes organizações não governamentais, etc.
O segundo aspecto é retomar parte daquilo que indicaram, já nos anos 1980, como essencial para fazer com que essa região não seja destruída. Ou seja, criar as condições de vida adequadas aos povos que vivem em seus territórios, ofertando a eles condições de vida decentes, com financiamento subsidiando a produção, valorizando uma gama enorme de produtos existentes nas florestas, os quais podem ser usados sem destruí-las, como essências e ervas medicinais.
O problema fundamental é que o modelo de desenvolvimento em curso no Brasil está pautado no processo extensivo de apropriação permanente de territórios para o saque dos bens naturais, para alimentar o moinho satânico do capital. A solução definitiva para mudar esse cenário, não creio que possa ser dada nos marcos do capitalismo, pois o capitalismo é incompatível com o bem-estar social, com a conservação do meio ambiente.
IHU On-Line – Quais as implicações do uso do termo desenvolvimento sustentável?
Elder Andrade de Paula - O uso desse termo tem sido até hoje extremamente útil para ocultar aquilo que ele de fato produz: a insustentabilidade. Em um determinado momento do capitalismo, pensou-se que seria possível compatibilizar a conservação dos bens naturais com a lucratividade do capital. Essa crença foi alimentada pelo colapso do bloco socialista, quando o socialismo deixou de estar no horizonte. Pensou-se, então, que era no capitalismo que se deveriam resolver os problemas mais emergentes da civilização. E acreditou-se que o desenvolvimento sustentável era a saída, ou seja, em nome do desenvolvimento sustentável se construíram esses processos a que me referi até agora. Ocorre que o desenvolvimento sustentável acabou se convertendo em uma grande ideologia que oculta o seu processo destrutivo.
Na Rio+20 aconteceu um fato extraordinário: a economia verde apareceu como “cavalo de batalhas”, e o debate, que foi jogado com a expressão economia verde, teve na verdade a intenção de revigorar o desenvolvimento sustentável. A diferença é que a economia verde revela suas intenções, enquanto o desenvolvimento sustentável as oculta. Então, criou-se uma falsa ideia, inclusive na Cúpula dos Povos, de que se teria de lutar contra a economia verde em favor do desenvolvimento sustentável. Essa é uma grande armadilha, porque o desenvolvimento sustentável, tal como preconizado pela matriz dominante no mundo, é veiculado às políticas do Banco Mundial. Ou seja, afirma explicitamente que só é sustentável aquilo que traz resultado econômico. Então são os resultados econômicos que comandam as políticas de estratégias. O restante é, novamente, política secundária, de assistência social, de mitigação de meio ambiente.
Há ainda uma ofensiva monumental aos bens da natureza com uma intensificação que se chama hoje financeirização, apresentada nesses mecanismos de pagamentos de serviços ambientais, que transferem para o mercado financeiro o controle de vastos territórios na forma de contratos como o REED.
O cenário atual da Amazônia hoje é muito mais grave do que foi no período do estado desenvolvimentista comandado pela ditadura militar. À época, as formas destrutivas eram visíveis; agora, boa parte das formas destrutivas é tornada invisível. O que aparece nos meios de informação do país são notícias a respeito da expansão das queimadas, ou então os impactos de grandes projetos como o hidrelétrica de Belo Monte, a abertura de estradas, a exploração de gás e petróleo. Mas esse conjunto de atividades das quais me referi não aparece nos noticiários.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Elder Andrade de Paula – Existe a emergência de movimentos que estão lutando contra isso em toda a América Latina. O exemplo emblemático foi o caso de Cochabamba, em 2010, na Bolívia, com ampla participação das comunidades indígenas e camponesas. Foi um dos eventos mais importantes do século XXI, porque se contrapôs ao consenso estabelecido no âmbito da ONU com o dito desenvolvimento sustentável. Ele serve como horizonte maior para nós pensarmos nas lutas de resistência, que não podem se dar isoladamente.
(Ecodebate, 23/09/2013) publicado pela IHU On-line, parceira estratégica do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
Fonte: EcoDebate
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